A promessa, como hoje o sabemos e sentimos de forma tão amarga, não passava de uma mera ilusão, de uma intoxicação colectiva que a maioria não soube, ou não quis, prognosticar. O milagre do dinheiro fácil e instantâneo, sem regras e sem justificação para tamanha riqueza súbita, transformou-se no pesadelo actual de uma riqueza que se mostrou efémera... e que precisa agora de ser paga, com os juros que estão implícitos em todos os empréstimos.
Mas os erros dos anos da falsa abundância não se medem apenas no endividamento e nos investimentos inúteis que alastraram pelo país. Com a chegada do dinheiro fácil e com a sua aparente abundância, os preços dispararam e uma nova cultura de laxismo entrou em cena. O mundo do vinho, um universo conservador onde as transformações são por natureza lentas, assistiu e sustentou uma revolução quase impensável. A disponibilidade de dinheiro fácil e barato aliada à promessa de uma ocupação que se mostrava socialmente atractiva, associada à ideia idílica para muitos urbanos de levar uma vida em comunhão com a natureza, atraiu para o sector uma miríade de novos actores que se acreditaram produtores de vinho... a vastíssima maioria dos quais sem qualquer ligação prévia com o negócio do vinho, sem qualquer experiência ou entendimento do sector, sem qualquer percepção sobre a dinâmica e os riscos da actividade.
Num ápice, fomos invadidos por vinhos cada vez mais caros, mais raros, e novamente mais caros e mais raros, num rosário permanente de alienação e imprudência. Porque o ego surgia desmedido e o dinheiro parecia tão fácil, porque a confiança surgia inabalável e o conhecimento dos novos actores no sector do vinho era quase nulo, abundavam os investimentos nas obras de fachada, no culto do acessório, empenhando investimentos em adegas de autor, desenhadas por arquitectos de renome, descurando o essencial do vinho, a vinha e a funcionalidade das adegas. Muitas das novas vinhas começaram a parecer-se mais com jardins de contemplação do que a locais de trabalho, embelezadas com flores, bancos de descanso, linhas de água, alfazema e caminhos de pedra, embelezadas por podas milimétricas que quase transformavam as linhas de vinha em buxos decorativos, sem qualquer sinal de ervas ou gramíneas a esboroar tamanha beleza Zen.
O dinheiro fácil e a falta de conhecimento conduziram, uma vez mais, a investimentos milionários e desastrosos em parques de barricas novas, muitas delas destinadas a educar vinhos de entrada de gama, num tique irracional de novo-riquismo que nunca poderia ser aceite numa análise racional. Não se faziam contas ao custo de plantar uma vinha, de levantar uma adega, de equipar essa adega, de contratar um enólogo, de criar uma marca, numa crença quase infantil de que o mercado cresceria para sempre e que a fortuna de Portugal seria uma verdade irreversível. Uma atitude que ajudou a eclipsar e a destruir muitos dos produtores clássicos de Portugal, gente que vivia do vinho, capaz de fazer contas... e incapaz de competir com quem não esperava que o vinho fosse uma fonte de rendimento.
Muitos destes novos produtores de traça urbana abraçaram a causa de lavrar um vinho cada vez mais exclusivo e mais caro do que o vizinho, perfilhando as práticas habituais do novo-riquismo, recorrendo ao preço como condição principal de sinal de qualidade e estatuto. Os consumidores, por sua vez, investiam compulsivamente em muitos destes rótulos, indiferentes ao preço sempre crescente a que eram promovidos, numa disputa sem regras por conseguir resgatar os nomes mais afamados, percorrendo as garrafeiras em perseguição aos rótulos escondidos e rateados entre os melhores clientes, face a uma procura que superava em muito a oferta.
A alienação chegou a tal ponto que mesmo muitos dos produtores clássicos, dos que sempre viveram do vinho e que tinham um passado de seriedade e rigor, embarcaram na onda de especulação e efervescência típica dos tempos de abastança, como se não houvesse amanhã. E o preço dos vinhos começou a ultrapassar barreiras inconcebíveis, abeirando-se dos cinquenta euros... para logo o registo passar à condição de normalidade, atingindo sucessivamente os setenta, noventa, cem... e acima dos cem euros por garrafa, muitas vezes com rótulos de produtores que lançavam a primeira colheita logo a preços recordistas, como se o preço fosse o único sinal de distinção e elevação suficientes para acariciar o ego e criar uma imagem de marca.
Quantos desses rótulos ou produtores ainda subsistem? E quantos desses produtores sobreviverão num futuro a médio... ou mesmo a curto prazo? Quantos destes produtores que não se deram à maçada de fazer contas ou não resistiram à tentação de especular com os preços dos vinhos terão hoje condições para sobreviver? Quantos destes produtores efémeros continuarão a merecer a atenção e o respeito dos enófilos nacionais? Quantos destes produtores que apostaram em projectos imprudentes e não foram capazes de construir uma imagem de marca respeitada e sustentável, terão hoje flexibilidade financeira e anímica para se adaptar aos tempos modernos, onde o preço é rei e senhor... e onde serão poucos os rótulos a conseguir sobreviver acima do patamar psicológico dos sete a oito euros?