Fugas - viagens

Nelson Garrido

Emilia-Romagna em três actos

Por Sandra Silva Costa

O que se segue é um relato sem ponta de cronologia, às vezes até caótico, de uma viagem cujo pretexto era visitar Bolonha mas acabou por ser muito mais do que isso. Fomos para a cozinha, fingimos ter um Ferrari, provámos vinagre do outro mundo e andámos à procura de Maomé numa igreja. E comemos, comemos, comemos - até que uma noite pedimos clemência

I acto: De avental e à mesa

Isto é Outono a caminhar apressadamente para Inverno e os termómetros andam bem abaixo de zero. Chegamos embrulhados em cachecóis, gorros, luvas e casacos compridos. O céu está cinzento e há fortes probabilidades de que ainda hoje nos caiam fiapos brancos em cima (não nos enganamos, a neve há-de chegar sem timidez, mas lá mais para a noitinha - e é ver-nos a atirar bolas à cara uns dos outros...).

No primeiro andar do número 12 da Rua de Santa Bárbara, Luísa recebe-nos em manga curta. "Buon giorno" - e um sorriso de legítima satisfação por ter cinco estranhos a entrar-lhe porta dentro. Deixamos os agasalhos num armário à entrada e aqui estamos nós, em casa de Maria Teresa, a mãe de Luísa, a Cesarine que nos vai ensinar a fazer tortelinni, tagliatelle e ainda umas bolachinhas que, em abono da verdade, deram mais gozo a moldar do que propriamente a comer.

Ainda não tínhamos dito, mas estamos em Bolonha, a cidade capital da região italiana de Emilia-Romagna. E Bolonha, cidade medieval, é também a sede de Le Cesarine, uma associação criada em 2004 que tem como objectivo promover, proteger e divulgar a gastronomia típica italiana. Fá-lo como? Entre outras coisas, através de aulas de culinária na cozinha das Cesarine associadas.

Quando chegamos, pelas dez da manhã, uma grande mesa montada numa salinha anexa à cozinha já está preparada: ovos, farinha, cinco rolos da massa, garfos, tigelas e panos da louça aos quadrados azuis. E, claro, um avental para cada um. 

Sob a mesa de trabalho, um enorme lustre colorido. Nas estantes em volta, fotografias de vários casamentos, retratos de crianças (Francesca, Giulia, Laura, Filippo, Federico, Federica), pratinhos de porcelana, bordados a ponto cruz. A um canto da parede, alguém assinalou o seu ritmo de crescimento a partir de 2006: 1,59 metros; 1,79 metros em 2010. O objectivo é chegar a 1,86 metros. Na mesma parede, estão expostos quatro mapas antigos: de Bolonha, de Catânia, de Nápoles e de Calábria, lugares onde a família de Luísa foi vivendo ao longo dos anos. 

O que é que isto interessa para o caso? Nada para além disto: estamos numa típica casa de família. (Esta, já dissemos, é a casa da mãe de Luísa, Maria Teresa, 80 anos, que também está cá hoje. Luísa conta que usa sempre a casa da mãe para as suas sessões Le Cesarine - "tem mais espaço e assim ela sempre não fica tanto tempo sozinha." Ri-se e pisca-nos o olho.) Voltando à família, Luísa faz notar que é nela que se aprendem sempre os fundamentos da cozinha - e isso faz toda a diferença.

Posto isto, antes de pormos literalmente a mão na massa, diz-nos que façamos de conta que estamos na nossa própria casa. 

Às 10h20 já estamos de avental posto e mãos lavadas (a propósito, já tínhamos dito que a casa de banho é um mimo, cheia de paninhos de linho e caixas de várias formas e feitios?), a postos para nos estrearmos nas lidas culinárias. Vamos começar pelos tortelinni: um ovo para 100 gramas de farinha, eis a dose necessária para uma pessoa. Começamos a bater o ovo, depois juntamo-lo à farinha e em seguida é fazê-los passar vezes sem conta pelo rolo da massa, até que fique com a espessura necessária. Isto é uma animação: espreitamos para o colega do lado, rimo-nos com a nossa falta de jeito e coramos de vergonha quando comparamos a nossa massa com a de Luísa - que, em italiano, nos vai incentivando. Paola, a nossa guia nesta viagem pela Emilia-Romagna, traduz - mas daqui a pouco há-de deixar-nos aos cinco sozinhos e a experiência torna-se ainda melhor. Vamo-nos entendendo com algumas palavras e muitos gestos. 

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