Um gigantesco edifício funcionalista, antes dedicado ao fabrico de chaves, é agora uma das melhores galerias de arte de Praga. Chama-se Dox e, quando lá estivemos, exibia uma retrospectiva de Douglas Gordon. A afluência de público era razoável, sobretudo jovens universitários checos, mas também muitos estrangeiros. Todos ou quase passavam, no entanto, ao lado das salas preenchidas com os vídeos do artista escocês, evoluindo directamente para o pátio ao ar livre do edifício, decorado com uma estranha escultura, semelhante a um gigantesco "kit" de construção, ou à versão XL de uma moldura de prémios, numa barraca de feira.
A escultura em causa chama-se "Entropa" e nasceu para criar escândalo. Começou como a ideia do governo checo de encomendar uma obra de arte para o edifício do Conselho Europeu, assinalando o seu semestre de presidência da União (Janeiro a Junho passado). A encomenda foi endereçada a David Cerný, o mais célebre dos artistas checos actuais, que não tardou a anunciar uma obra em formato de "kit" de modelagem na linha da galeria das figuras de plástico em tamanho real (Cristo, Adão e Eva, Uma Estrela Rock), que produzira em 1995. A diferença é que, neste projecto, Cerný seria menos o autor que o coordenador de criações assinadas por artistas da Europa dos 27, cada um chamado a ilustrar o imaginário do respectivo país. No lugar disso, porém, o artista checo e o seu usual círculo de cúmplices forjaram eles mesmos as representações das nações da Comunidade, inventando ainda os artistas estrangeiros que supostamente as teriam assinado.
Todas as representações reflectem estereótipos nada lisonjeiros desses países, todos os artistas inventados são caricaturas. A obra inteira é uma mistificação, que retrata a Europa e os seus meios artísticos como um completo "Absurdistão". Cerný ocultou, no entanto, as premissas de "Entropa" até à inauguração em Bruxelas, semeando a desorientação na assistência, a polémica nos média e a indignação dos 27 em particular da Bulgária, representada como uma latrina turca, onda de protestos que culminou na sua retirada prematura de exposição. Na ressaca da tempestade, ficou a ganhar a cidade de Praga, e em particular a galeria Dox, onde agora se expõe uma obra instantaneamente célebre, "condenada" a tornar-se num novo pólo de atracção turística da capital checa.
Incendiário político
A obra que primeiro tirou David Cerný do anonimato foi "Tanque Cor-de-Rosa". Em 1991, ou seja, pouco tempo após a queda do Muro de Berlim, Cerný e associados resolveram cobrir de cor-de-rosa um dos símbolos de eleição de 40 anos de comunismo checo, um tanque oferecido pelos russos e instalado sobre um pedestal à maneira de uma escultura na praça Kinských. O bando forjou cartas de autorização, trocou as voltas à polícia, depois saiu de circulação durante um par de dias. Quando voltaram às ruas, Praga estava em estado de sítio com manifestações pró e contra a intervenção, que acabou por simbolizar o fim de uma era para um país inteiro. O tanque voltou a ser pintado de verde pelo exército, depois de cor-de-rosa com a contribuição de ministros do governo checoslovaco da altura. Quando os ânimos esfriaram, foi discretamente retirado da praça e faz agora parte da colecção do Museu Militar, a meia dúzia de quilómetros de Praga. Entretanto, Cerný instalou parte de uma carcaça de tanque na mesma praça, por ocasião da invasão russa da Thetchénia, mas provocou menos agitação e foi rapidamente removida.