Da loja Mini Som, no número 16, desprende-se a voz de Carlinhos Brown, um dos muitos cantores baianos. Podia ser de Ivete Sangalo, que ali vive ainda. Ou de Gilberto Gil, Seu Jorge, Maria Bethania ou Gal Costa. Ou ainda de Daniela Mercury, que também ali tem casa. "Essa aí chegou mesmo a cantar uma música sobre o Ilê Ayé", conta Jorge Nascimento, o dono da loja. Negro.
Como é negra cerca de 80 por cento da população da Bahia. Nascimento rejubilou de alegria quando Mercury universalizou o movimento do Ilê Ayê, grupo cultural de luta pela valorização e inclusão da população afro-descendente, numa das suas músicas. "Nos teus olhos sou mau visto/Diz até tenho má índole/Mas no fundo tu me achas bonito/Lindo! /Ilê Aiyê...!/Negro sempre é vilão/Até meu bem, provar que não/É racismo meu? Não". Não? "Racismo sempre vai havendo no Brasil. Tem rádio que não passa música de negro", sentencia Nascimento.
Ao turista, este baiano aconselha uma passagem pelo Bairro da Liberdade, o maior bairro de população negra do país com cerca de 600 mil habitantes. "É um bloco afro onde existe um movimento muito grande em favor da liberdade negra", caracteriza, convicto de que a inclusão daquela zona nos roteiros turísticos pode ajudar a dissipar barreiras baseadas na cor da pele.
No bairro, como no resto da Bahia, "a música anda no sangue de toda a gente". E, assim sendo, "os baianos são alegres: riem mesmo das dificuldades".
Para ir ao Bairro da Liberdade seria preciso sair do centro histórico. Património Mundial desde 1985, o Pelourinho, ou o Pelô, como lhe chamam, é o maior aglomerado colonial de todo o Brasil e, apesar de ir funcionando como montra para turista ver, mantém o ritmo boémio que torna fraca a vontade de descer pelo Elevador Lacerda até à parte baixa da cidade. De cima, conseguese uma panorâmica da Bahia de Todos-Os Santos e não é fácil recuar até ao tempo em que os portugueses usavam mulas e escravos para transportar mercadorias entre a parte alta e a parte baixa da cidade.
Com o elevador, inaugurado em 1868, tornou-se mais fácil chegar, por exemplo, ao Mercado Modelo. Com formas neoclássicas, o edifício de dois pisos funciona hoje como o maior shopping de artesanato do Brasil. Os aficionados asseguram que foi neste mercado que Jorge Amado se inspirou para o romance "A morte e a morte de Quincas Berro D'Água", personagem baseada num dos clientes habituais do mercado muito dado aos prazeres etílicos e que terá berrado água quando, por engano, a bebeu de um trago julgando que era cachaça. Diz-se que intelectuais como Sartre e Simone de Beavouir e mesmo cineastas como Orson Wells não perdiam uma oportunidade de se passear pelo mercado quando visitavam a região. E, se perguntarmos aos vendedores, não falta quem jure a pés juntos que, à noite, se ouvem as correntes dos escravos que outrora eram encafuados na cave do mercado.
Menos turístico, mas igualmente colorido, é o Mercado de S. Joaquim. "É o pedaço do Brasil que mais se parece com África", pinta um guia local que desaconselha máquinas fotográficas ou qualquer outro sinal de riqueza a quem se aventure pela feira. No seu interior, entre o aglomerado de barracas, prepondera o ritmo do berimbau regado a cachaça e a caipirinha; negoceia-se o azeite dendê, o abacaxi e os electrodomésticos. "Até carro tem, se tiver dinheiro para comprar", galhofa o guia. Vale a pena entrar para mergulhar mais fundo na pulsação do quotidiano brasileiro. Mesmo que não se queira comprar. Afinal, como garante Pedro Paciência, "na Bahia, não precisa de dinheiro para ser feliz".