Multas por cantar Amália
Mogofores entrou definitivamente na vida de José Cid quando tinha 11 anos, altura em que a família se mudou de malas e bagagens da Chamusca, onde nasceu, para a casa do avô paterno. As recordações da casa da infância não se esquecem. No Ribatejo, havia um velho piano no sótão e o pequeno Cid não lhe dava sossego. Sozinho, sem qualquer manual de instruções, aprendeu a dominá-lo sem dificuldade, sem pautas por perto. Arrancava melodias e surpreendia quem ia lá casa. “Com quatro, cinco anos, tocava e cantava e as pessoas ficavam de boca aberta”, lembra. Com apenas três deditos da mão direita fazia a festa e raramente carregava na nota ao lado. Chegou a ter professora de piano, mas durante pouco tempo. O ouvido para a música sobrepunha-se a qualquer lição e não havia paciência para seguir as notas das pautas. “O meu sonho era cantar na rádio”, recorda. Diziam-lhe que a rádio ficava longe, em Lisboa.
O seu percurso desaguou na música e não foi difícil chegar à rádio em Lisboa. Chegou a estudar Direito na Universidade de Coimbra, por pressão dos pais, que queriam vê-lo vestido de preto na magistratura. Desistiu sem concluir o primeiro ano e matriculou-se em Educação Física no então Instituto Nacional de Educação Física. Nos tempos da tropa, na Força Aérea, chegou a dar aulas de ginástica, só que a música já andava a fazer das suas. Começou no piano na banda Os Babies, em 1956, a interpretar versões, passou depois para Os Claves e a seguir fixou-se no Quarteto 1111. A carreira a solo foi um processo natural. “O Quarteto 1111 já não conseguia acompanhar-me no que eu queria.” E cada um seguiu o seu caminho. “Não morremos na praia”, garante.
“O projecto da minha vida é escrever canções, gravá-las e depois cantá-las o melhor que puder.” Ao vivo, tem uma superbanda. “Escolho músicos que sejam bons e que toquem para mim, que toquem o que as minhas músicas precisam. Rock é rock, pop é pop, balada é balada, étnico é étnico, fado é fado.” Anda com o novo disco do fadista António Pelarigo nas mãos (será apresentado na próxima semana no Speakeasy, em Lisboa). Assina a produção de uma das músicas. E enche o peito para falar de Pelarigo, o pescador-fadista que cantava nas horas vagas e que agora é conhecido no meio. Em Novembro, pelo São Martinho, é tempo de apresentar o seu novo álbum, Menino Prodígio, que tem baladas roqueiras, uma canção dedicada a Marilyn Monroe, um poema de José Régio. Quando lhe dizem que o rock não é para a sua idade, encolhe os ombros e não passa cartão. É tempo de ouvir algumas músicas desse álbum. “O menino prodígio morreu, o seu epitáfio sou eu”, canta numa das canções. Soa a familiar. “É uma história de vida, é a minha história já no fim.” O grafismo está praticamente pronto, terá as letras escritas e fotos de José Cid de várias etapas da sua vida. Uma autobiografia em CD.
Esteve no top 10 australiano e também no sul-africano nos anos 80. Nos anos 1990, teve hipótese de assinar pela Sony americana — só não se concretizou por causa da sua idade, andavam à procura de jovens músicos. Nessa altura, José Cid entrou em hibernação. “Foi uma década em que desapareci, mas em que gravei álbuns bestiais”, adianta. Seja como for, a internacionalização nunca lhe tirou o sono. “Fora de Portugal quem funciona são as fadistas. Andam à procura de uma nova Amália, o que é completamente impossível. Amália é só uma, a melhor cantora do mundo na sua época. Não temos nada que se compare e devia sair uma lei na Assembleia da República que proibisse cantar Amália Rodrigues, quem o fizesse era pesadamente multado.”
O estúdio de José Cid tem vista para mais quintas, árvores e jardins. Não há barulhos de cidade a entrar pela janela. Nas paredes insonorizadas, fotos a preto e branco das suas primeiras bandas, dos anos 50 e 60 do século passado. Um recorte de revista que lembra o sucesso que o seu álbum 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, de 1978, alcançou no resto do mundo — figurou na lista dos 100 melhores álbuns de rock progressivo de sempre da revista americana Billboard. Álbum que, neste momento, e mais de 30 anos depois, entra no alinhamento dos seus concertos e que estará em força no Coliseu de Lisboa. Na parede, há também uma foto de Salazar bem jovem com um pedido do bispo de Coimbra. “Encontrei isso na biblioteca cá de casa, mas aqui não havia salazaristas. Fartei-me de rir, encontro estas coisas surrealistas e ponho aqui no estúdio.” E conta a história. “Em 1937, houve um atentado ao Salazar e o bispo de Coimbra dava uma bula e absolvição a quem rezasse não sei quantas avé marias.” Uma brincadeira, portanto. Uma provocação também. As músicas que o antigo regime lhe proibiu não foram brincadeira. José Cid sabe exactamente quantas não passaram no crivo de Salazar. “Foram 28 cantigas proibidas pela censura.”
No estúdio, tem uma mesa cheia de botões. “Nunca na minha vida me passou pela cabeça que ia gravar em computador, não me dá prazer nenhum. Este som é muito mais quente. Mais humano do que o digital. E está na moda outra vez porque as novas gerações já não se deixam enganar.” Mais um CD para ouvir, desta vez de canções de poemas do espanhol Federico García Lorca que cantou na língua original, em 1998. Fica em silêncio a ouvir-se. E nós com ele.
Aquela sala é o compartimento mais concorrido da casa. Ali, dentro de dias, seria gravado o hino do novo partido político que está a recolher assinaturas para se apresentar nas eleições legislativas do próximo ano. Está tudo preparado. José Cid é um dos rostos do Nós, Cidadãos. “Nem à esquerda, nem à direita, mas por baixo para ajudar e ouvir a população”, diz. O músico anda preocupado por ver triste um povo que é alegre. “Estou a apoiar um partido que seja mesmo nacionalista, que venha pela base, que defenda as pessoas, que não permita corrupções, que não permita escândalos.”
Assume-se como monárquico progressista e acredita que é possível acabar com os jobs for the boys. “Nos lugares de competência têm de estar as pessoas com competência”, defende. E recua até 1974. “O 25 de Abril, em vez de destruir a pobreza e controlar a riqueza, sustentou a riqueza, de offshores, destruiu a classe média e fez o país mais pobre. Não contesto, constato.” Ficou contente com a Revolução dos Cravos, mas confessa que a pouco e pouco percebeu que havia coisas que não batiam certo.