Fugas - Viagens

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Belém: Vamos comer o Pará

Cada viagem para o interior do Pará é uma nova descoberta para Thiago. “A gente está só no início”, conta, explicando que só começou a olhar para os ingredientes de outra forma, no início da sua carreira, depois de ter passado seis meses em Portugal a estagiar com Vítor Sobral. “Vi o que ele fazia com os ingredientes da terra e o que eu podia fazer com técnicas aqui. Quando fui, olhava para os ingredientes como qualquer paraense, mas quando voltei já olhava com mais liberdade, mais livre daquela prisão cultural da tradição.”

Bendita mandioca

Estes mundos da Amazónia e do Pará vão chegando cada vez mais longe — em grande parte porque Thiago e Felipe os têm divulgado, em parte porque outros chefs, como Alex Atala ou Ana Luísa Trajano, começaram a levá-los também para São Paulo e outros pontos do Brasil e do mundo.

Mas aqui em Belém, e sobretudo depois da morte, em 2010, do pioneiro Paulo Martins, fundador do Lá Em Casa (que hoje tem à frente a sua mulher e filhas), são os irmãos Castanho os grandes embaixadores da gastronomia paraense. Foi por isso que na manhã do dia em que jantámos no Remanso, Thiago esteve no Mercado Ver-o-Peixe a gravar uma peça para a televisão local. E foi por isso que, apesar do cansaço, aceitou fazer outra madrugada e no dia seguinte (ou seja, dali a algumas horas) encontrar-se connosco novamente no mercado para gravar um vídeo explicando tudo o que se pode fazer com a mandioca. Encontro marcado, vamos dormir.

No dia seguinte, quando chegamos, o mercado já está em actividade há várias horas. Marcámos encontro ao pé da zona da mandioca e Thiago senta-se entre os homens que, com facalhões assustadores e gestos certeiros, descascam as mandiocas, sentados em bancos baixinhos, enquanto as cascas se amontoam à volta. Ao lado estão as bancas que vendem os produtos retirados da mandioca.

Numa banca de maniva (a tal pasta verde feita da folha da mandioca, em versão “pré-cozida” ou “cozida 7 dias”), uma mulher tritura as folhas verdes numa máquina onde se lê “Deus dê forças aos meus inimigos para que assistam de pé à minha vitória”. Outra distribui por sacos de plástico a pasta destinada a fazer a maniçoba. Outros vendem tucupi em garrafas, jambu cozido, macaxeira (inhame) ralada e coco ralado.

A pouco e pouco, alguns nomes vão-se tornando mais familiares. Mas quando, depois de uma lição sobre o aproveitamento total da mandioca, herança dos indígenas, descemos a outra zona do mercado, estamos perdidos de novo. “Este é que é o cupuaçu?”. “Como se usa o jenipapo?”, “Não tinha percebido que a pupunha era assim.” Abrimos a boca de espanto perante uma jaca com mais de dez quilos que um vendedor simpaticamente segura no ar para podermos fotografar e diligentemente tomamos nota de todos os nomes que nos dizem, do tucumã ao biribá, do taperebá ao piquiá (mais tarde, Cleber há-de enviar-nos por email uma longa lista com todos os nomes, fotos e descrições de cada fruta que vimos).

Há imagens da Virgem da Nazaré, enfeites coloridos de Natal e televisões com apresentadores eufóricos e acompanhantes meio despidas. Homens cortam castanhas de caju em bancadas de madeira que, de tantos anos de uso, ganharam já as marcas profundas de cada golpe que receberam, outros abrem cocos, um velhote mói cominhos, os cheiros misturam-se no ar, e ainda nem chegámos à zona das ervas que curam tudo e tudo prometem. Frascos pendurados em molhos anunciam óleo de linhaça e arnica, ao lado de outros identificados como cicuta.

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