A vida faz-se de ciclos, de modas, de etapas que consumimos de forma cada vez mais acelerada. Há menos de dez anos poucos perderiam tempo a falar de vinhos brancos, poucos se dignariam a olhar para os vinhos brancos, aqueles que eram bebidos mesmo antes de se chegar aos verdadeiros vinhos, o vinho tinto. Há menos de vinte anos poucos tinham ouvido falar no nome de alguma casta nacional, poucos conseguiriam reconhecer o nome de três ou quatro variedades portuguesas, com as devidas e conhecidas excepções da Alvarinho e da Baga. Há menos de dez anos poucos teriam ouvido falar da casta Encruzado e ainda menos saberiam de que região a variedade era originária, se era branca ou tinta, quais os aromas ou quais os vinhos onde ela entrava.
Em pouco mis de uma década tudo mudou em Portugal e hoje, apesar de esse conhecimento continuar restrito a um pequeno núcleo de entusiastas, já conhecemos muitas castas pelo nome, sabemos algumas das suas sinonímias, sabemos ao que cheiram e sabem, conhecemos alguns dos vinhos mais famosos onde essas castas brilham. Entre os nomes mais intuitivos desta nova realidade encontra-se a Encruzado, uma das três grandes castas brancas portuguesas a par de outras duas variedades de enormíssima qualidade, a Alvarinho e a Loureiro.
Sim, a Encruzado é uma variedade brilhante, uma casta de elogio obrigatório, uma das jóias maiores do vasto património ampelográfico nacional. Embora não se conheça a sua história a fundo, presume-se que será originária da região do Dão, denominação onde brilha e onde se concentra de forma quase exclusiva. Convém não esquecer que se hoje falamos da Encruzado com tanta eloquência e a elogiamos de forma tão arrebatada, num passado recente a maioria não valorizava a casta e poucos aspiravam plantá-la ou vinificá-la… tal como poucos valorizavam ou mostravam afecto pela Touriga Nacional, casta que entretanto se transformou no porta-estandarte dos vinhos lusitanos… e que, curiosamente, será originária da mesma região, situação que a par da qualidade excelsa das duas variedades permite traçar um conjunto de paralelismos interessantes entre as duas castas.
De todas as castas brancas portuguesas, a Encruzado é aquela que mais se afasta do modelo simples de vinhos ligeiros ou aromáticos, dando corpo a vinhos relativamente austeros, fechados, pouco fragrantes no aroma, mas cheios, intensos, pujantes e profundamente autoritários na boca. Não é uma casta fácil ou condescendente, podendo mesmo, por ser tão corpulenta e robusta, chegar a fazer passar a ilusão de estar perante um vinho tinto. De forma mais directa e talvez um pouco brutal na sem-cerimónia, a Encruzado é uma casta absolutamente rica e extraordinária mas que dificilmente vive sozinha, dificilmente dá manifesto a vinhos insuperáveis quando é proposta em versão monocasta, sem o amparo de outras castas que lhe ajudem na definição aromática.
É fácil voltar a estabelecer um paralelismo com a Touriga Nacional, casta insigne mas que tal como a Encruzado agradece a companhia de outras castas para se poder expressar na plenitude, para aumentar a complexidade e criar vinhos incomparáveis. Na verdade, a apresentação da Encruzado em vinhos estremes é um fenómeno recente e sem sustentação na história que a privilegiou nos vinhos de lote. A história ensina-nos através do exemplo dos enormes vinhos brancos da região do Dão, muitos deles das décadas de cinquenta e sessenta do século passado, que a Encruzado se sente mais confortável e permite melhores resultados quando combinada com algumas das outras variedades tradicionais do Dão, castas como a Malvasia Fina, Bical (Borrado das Moscas na região) ou as quase desaparecidas Sercial e Terrantez, castas outrora típicas e presentes na região. Deixarmo-nos enredar, em pleno século XXI, na pretensão de fazer vinhos estremes, deixarmo-nos perder em tiques importados de produzir vinhos varietais quando a tradição portuguesa e a tradição da região sempre foi elaborar vinhos de lote é um erro que nos irá sair caro. Sobretudo quando a Encruzado se sente muito mais feliz e confortável quando em coligação com outras variedades igualmente originárias da região. Não faria mais sentido tentar resgatar do oblívio as castas Sercial e Terrantez num regresso a um passado recente de evidente sucesso?