"Durante uma década proibi que se cantasse ‘Uma casa portuguesa' ou o ‘Cheira bem, cheira a Lisboa', diz-nos Mário Pacheco, o guitarrista que fundou uma catedral do fado lisboeta há cerca de década e meia. Eis um sinal de como as coisas pelo maravilhoso mundo do fado alfacinha foram mudando nos últimos tempos. É sob a bênção da Sé que Pacheco nos recebe no seu Clube de Fado, uma referência que, sublinha o próprio, "foi uma revolução nas casas de fado". À entrada, as medalhas: retratos dos grandes nomes do fado e visitantes ilustres (de Woody Allen a Bethânia). À sala principal, em tecto ogival e colunas, com direito a um poço moiro, foi recentemente acrescentada uma segunda sala, mesmo ao lado.
O objectivo de Pacheco foi criar um espaço global clubístico e nada típico. "Detestava a palavra. Para mim, era igual a cebolas penduradas, porcaria no tecto... restaurante típico é assustador...", resume. Com longa carreira, tocou em todas as casas e confessa que achava o "negócio" do fado "tão triste, tão vendido, porque o objectivo das actuações, dos artistas, era vender à mesa, o fado era um chamariz para facturar". "Impus excelência em tudo, no fado e na comida", "dignidade e respeito", incluindo a interrupção do serviço enquanto o artista actua, um afastamento do "simplismo turístico".
"Aqui, canta-se fado", resume, sublinhando que, após os jantares, alicerçados na gastronomia nacional "de qualidade" e "sem dosezinhas", o ambiente apruma-se para ouvir a canção nacional. Para tal, Mário Pacheco acrescenta que não aceita grupos que ocupem mais de metade da sala, senão "às onze horas vão-se embora e fica a casa vazia" como acontece noutros sítios. A luz reduz-se, os convivas que enchem a sala, e até barulhentos - "com os grupos já se sabe" - vão-se silenciando, o fado chega. Canta Cuca Roseta, toca Mário Pacheco e companhia, um contrabaixo reforça o fado. Faz-se luz nos sentimentos.
Ali quase ao virar de esquina, outro espaço de referência espera por nós. É a real Casa de Linhares, célebre também por outro apodo, o da casa anterior, Bacalhau de Molho. É um luxo sóbrio, palaciano, nas fundações de um edifício renascentista que ruiu no terramoto de 1755, tão inerente à história lusitana que Luís de Camões, parente dos condes de Linhares, aqui viveu. Sem sinais de "kitsch" fadista, um pé-alto de sete metros, tectos em abóbada, colunas de pedra, tem uma década de história e é gerido por Pedro Guerra e Manuel Bastos - também responsáveis pelo vizinho Pátio de Alfama, onde impera o folclore que, afiança Guerra, é "rigoroso" e o fado encenado, e a Taverna do Embuçado, esta em "stand by".
Entre umas garfadas num perfeito bacalhau, as luzes reduzem-se e entram os músicos. Ao centro da sala, a voz poderosa de Cidália Moreira é a atracção principal, bem acompanhada por Jorge Fernando e com direito a uma estrela-visitante, o guitarrista José Manuel Neto. Da mesa, temos vista para um túnel que corre sob Alfama até à Sé. O certo é que deve contribuir para a acústica, já de si perfeita. Muito deverá ter ajudado Ana Moura, que de vez em quando ainda volta a esta que foi a sua casa.
Da sobriedade é um passo até à tradição mais enraizada. Chegue-se ao Beco do Espírito Santo, onde, desde a década de 50, impera a Parreirinha de Alfama. É a casa de Argentina Santos, a primeira grande referência no bairro. E é Argentina que nos recebe, passado um patiozinho, telefone à mão, de guitarras na parede e uma espécie de altar à Nossa Senhora atrás de si, sentada à entrada a uma mesinha que dispõe os CD dos seus fadistas. Aos 87 anos, e apesar de mazelas da saúde, parece controlar tudo. É terça-feira e a noite está fraca nesta sala pequena de tectos baixos, decorada a memorabilia fadista, homenagens a fadistas, busto de Amália em adoração, uvas, parras e jarros de vinho. Um casal de turistas apenas, mas a fadista Micá não se atrapalha.
"A saudade andou comigo/E através do som da minha voz/No seu fado mais /fez mil versos a falar de nós ...", canta. Já a dona Argentina, lenda viva, dona de um cantar histórico em si próprio, só canta quando lhe apetece e a saúde deixa. Pela sua casa, espaço museológico, passaram e ouviram-se todos os grandes do fado. Começou como cozinheira aos 24 anos e sua mão para a cozinha era famosa, mas agora quem lá trabalha é a senhora Augusta, que avisa Argentina, "está cá há muitos anos, aprendeu tudo comigo, ela dá-lhe um toque igualzinho". "Às vezes provo qualquer coisa e até parece que fui eu que fiz". Satisfeita por ter tantos portugueses quanto turistas, a fadista defende que "as pessoas estão a pagar é para serem servidas como deve ser" e reconhece que ir aos fados fica hoje em dia muito mais caro que antigamente.
"A gente nunca pode vender barato porque as despesas são muito grandes", "as coisas evoluíram muito, há muitas despesas, artistas que é preciso pagar", acrescenta, lançando, com olho ladino: "Até porque aqui não há cá fado vadio, isso é para tabernas de rua". Mesmo a sua Parreirinha passou em mais de meio século de taberna ("mas atenção, já separávamos o trigo do joio") a restaurante cuidado e com preços à medida. Embora não se possa ir à Parreirinha esperando ouvir a dona Argentina, a sua presença continua a ser uma atracção. E é de sobrancelha arqueada que "está sempre ali", que não tem "vontade nenhuma de morrer". "Peço a Deus que me dê mais uns aninhos".
Entre a dignidade do Clube de Fado e o "rigor" da Casa de Linhares ou a tradição de Argentina, espalham-se, pelo labirinto de ruelas de Alfama, casas históricas ou restaurantes a puxar o turista e o "fado vadio" que percorre os mais variados locais. Mas corre também a procura da experiência do fado puro, num sentido quase religioso.