Fugas - Viagens

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Curitiba, a cidade exemplar

Cá fora, o “cachorródromo” à entrada do Bosque do Papa (em homenagem à visita de João Paulo II em 1980) está concorrido. Para lá do relvado, a floresta guarda o Memorial Polonês, casas de madeira como aquelas onde viviam os primeiros imigrantes polacos. É também de ascendência polaca César, o professor de biologia feito guia que nos conduz por esta cidade que não se desvia do futuro mas não esquece o passado. Iluminada, quem sabe, pelos seus Faróis do Saber, a rede de bibliotecas comunitárias que complementa a Biblioteca Pública do Paraná, uma das maiores do Brasil: são 45 espalhados por toda a cidade e edificados em forma de torre (com algumas excepções, como o Farol do Saber Gibran Khalil Gibran que se situa no Memorial Árabe, e tem arquitectura islâmica) — homenagens ao antigo farol e biblioteca de Alexandria.

De comboio pela história

Há um rio Ipiranga assinalado e Cesar alerta que não tem nada a ver com o riacho onde foi proclamado o famoso grito do Ipiranga, o momento simbólico da “independência ou morte”, génese do Brasil independente. Esse começa e acaba em São Paulo, nós estamos no troço da Serra do Mar paranaense, declarada  Reserva da Biosfera da Mata Atlântica pela UNESCO, que separa Curitiba do litoral — e que a linha ferroviária uniu em 1885 ligando a capital do estado a Paranaguá, na costa. A água do rio é vermelha, barrenta, em contraste com o verde absoluto que nos espera, de natureza quase intocada. Nós chegaremos ao mar, mas não nesta litorina (comboio) de luxo do Great Brazil Express — vai deixar-nos em Morretes e seguiremos até Antonina de “van” —, que nos transporta pela história de várias maneiras: pelo próprio vagão onde seguimos, pelo traçado que percorre e pelos destinos. Todos a bordo, o comboio vai partir.

E vai mesmo a apitar. Enquanto não saímos da zona urbana, o comboio segue lentamente apitando em todas as passagens de nível — o apito deixará de se ouvir, a velocidade, essa, vai manter-se. Afinal, a ideia é deixar a paisagem envolver-nos: o destino é importante, mas é um pretexto para quem vai nesta carruagem dos tempos em que comboios de luxo eram como salões, com painéis de madeira, poltronas e sofás de couro e de tecido, mesas redondas e rectangulares, candeeiros — e serviço à mesa. O cenário ideal para descobrir uma história que começou em 1880, quando se deu finalmente início aos trabalhos de construção da linha ferroviária, um projecto várias vezes adiado, tal a ousadia que representava. Vários engenheiros europeus recusaram-no, alegando a impossibilidade da obra, dois irmãos, baianos e negros, os Rebouças, aceitaram-no com o pedido especial ao imperador de não serem utilizados escravos na sua construção. D. Pedro II aceitou e em 1885 esteve presente na inauguração.

Um dos 14 túneis (a que se juntam 30 pontes e incontáveis viadutos que transformaram esta linha num prodígio da engenharia oitocentista), o da Roça Nova, encontrou nova vida, transformado em adega de espumantes aqui produzidos; e passado este trecho a exclamação do pequeno João, a viajar com os pais: “Mãe, estamos na selva!”. A “selva” é a Mata Atlântica virgem (a maior porção dela) que cobre montanhas e vales profundos e se deixa rasgar por rios, lagos, cascatas. Estes não vemos: vemos o mar de verdes que ondula com o terreno e se deixa matizar de várias luzes e às vezes encobrir de farrapos de névoa. Passamos ruínas melancólicas, paramos em santuários (do Cadeado) que são varandas na paisagem, (quase) flutuamos em trechos (como na Ponte São João, 55 metros de altura), vemos símbolos de heróis caídos e esquecidos (uma cruz a assinalar o local da execução do Barão do Serro Azul durante a Revolução Federalista), entramos no Parque Estadual do Marumbi e, passadas mais de três horas, chegamos ao destino, Morretes.

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