No dia em que falamos com ele, Lucas e o projecto Chamo’s (expressão que na Venezuela significa “rapaz”) estão na rua há apenas um mês em meio, muito pouco tempo para perceber como é que este negócio pode funcionar. Para já, o movimento não é muito, apesar de esta ser uma zona de Lisboa com bastantes escritórios e por onde passa muita gente diariamente. Lucas acredita que com o início das aulas o número de clientes vai aumentar, dado que está num ponto de passagem de muitos dos alunos que vêm da Escola Secundária Marquesa de Alorna.
“Está a correr bem, dá para cobrir as despesas”, diz. “Mas nos festivais e eventos de fim-de-semana é totalmente diferente, chegamos a ganhar 350 ou 500 euros num dia.” Está optimista. “Isto não é um fenómeno só de Portugal, é uma tendência global, por isso vai ter sucesso.”
A tradição de comida de rua, do Malcozinhado às sandes de couratos
Recuemos até ao século XVI. Junto ao Mercado da Ribeira, em Lisboa, existia um espaço famoso: chamava-se o Malcozinhado e era “um conjunto de tendas frágeis e insalubres”, descreve Pedro Cruz Gomes, autor de um livro a publicar em breve intitulado Lisboa, Gastronomia de uma Cidade. Era aí que os trabalhadores dos estaleiros navais e os embarcadiços iam comer peixe frito acompanhado por um copo de vinho.
“Nós, lisboetas, temos uma tradição muito grande de comer na rua”, afirma Pedro Cruz Gomes. “Temos muitos petiscos portáteis, os rissóis, os croquetes, as chamuças, os pastéis de bacalhau. Tudo isso pode ser considerado a nossa tradição daquilo a que hoje se chama street food.”
Na pesquisa que fez para a tese do mestrado em Ciências Gastronómicas, e que deu origem ao livro, encontrou vários relatos de cenas da vida lisboeta envolvendo esse tipo de comida já cozinhada ou a venda, na rua, de produtos para cozinhar. “Tínhamos desde as peixeiras à mulher da fava-rica, que andava com a panela a distribuí-la a quem a queria comprar. Esta comida já cozinhada destinava-se sobretudo aos saloios, que vinham à cidade entregar legumes e que precisavam de comer alguma coisa a meio da manhã, aos operários que durante o dia não podiam ir a casa ou viviam sozinhos e não tinham quem lhes preparasse o farnel. Mas também se vendia para casa, as pessoas vinham cá abaixo buscar ou faziam descer o pucarinho pela janela.”
O Malcozinhado ficou famoso e, apesar da falta de higiene, durou uns 300 anos, até ao século XVIII. Mas não era único. Espalhados pela cidade existiam outras tendas de comida nas quais, segundo um dos textos citados no livro, “se grelham sardinhas, badejo e outros peixes baratos”. Os clientes traziam com eles o pão e compravam meia dúzia de sardinhas assadas. Um outro texto, referente também ao século XVI, fala de “50 mulheres, entre brancas e pretas […] que, amanhecendo, saem na Ribeira com panelas cheias de arroz, couscous e chícharos”, para além das negras que vendiam umas muito apreciadas ameixas passadas cozidas.
Não existiam sandes — até porque as carcaças ou papo-seco ainda não tinham sido inventados e a carne, sobretudo a de vaca, era coisa rara — mas havia, para além do peixe frito ou assado, pastéis, que, segundo Pedro Cruz Gomes, seriam grandes, mais parecidos com empadas — e, curiosamente, estavam proibidos os de carne de bode, cabra, ovelha e porca. Na rua vendiam-se ainda doces, trabalho que, dizem os documentos da época, ajudava a sustentar muitas mulheres pobres, e que, durante um período, chegou mesmo a estar interdito aos homens. E havia ostras que na época, de tão abundantes no Tejo, eram petisco popular.