Não se trata, pois, de um modelo exclusivamente macaense, onde já existem 24 casinos – hoje, esse número já deve ter crescido –, uma vez que os estabelecimentos de jogo continuam interditos em solo administrativamente chinês. Os casinos crescem a uma progressão geométrica em Coloane e no que sobra do resto da antiga colónia portuguesa, mas também proliferam em todos os outros países que procuram estratégica (e desesperadamente) turismo em massa oriundo da China. Os casinos crescem na progressão inversa à da influência portuguesa na cultura macaense, da qual sobram alguns jornais, poucos restaurantes, nos quais mal se fala português, e nas nostálgicas placas das ruas com alguns nomes familiares. Há mais selfies por metro quadrado nas ruínas de São Paulo do que em Portugal inteiro (incluindo regiões autónomas).
Também cidades australianas como Brisbane ou como a minúscula e pacata Cairns já não sobrevivem com a mesma desfaçatez sem o faites vos jeux. Aparentemente, à imagem de Sun City, os aborígenes de Cairns só são avaliados pelas moedas que têm nos bolsos e não pela cor, pela biografia ou pelo preconceito, embora ainda não tenham a opulência dos black diamonds da África Austral. E a existência de um casino, do jogo, tanto pode ser um pretexto de Cairns para uma visita à Grande Barreira de coral como a própria razão da viagem até à Austrália. Mas ainda ninguém é obrigado a entrar.
É verdade, o mundo está ao nosso alcance. A acessibilidade mudou como nunca antes mudara, embora tudo dependa, mais uma vez, do tempo. E, já agora, do dinheiro. Fogg colocou um punhado de notas num saco de viagem e entregou-o ao seu Passepartout, o criado francês que acabara de contratar, antes de os dois se encaminharem para a estação de Charing Cross:
– Tome bem conta disto, pois estão lá dentro 20 mil libras – recomendou o cavalheiro da Saville Row.
Júlio Verne escreve que Passepartout quase deixou cair o saco, “como se as vinte mil libras fossem de ouro, e o seu peso o fizesse vergar”. Hoje, 20 mil libras equivalem a cerca de 27 mil euros, um pouco mais que o montante necessário para contratar uma volta ao mundo (ver como ir).
E então? Navegar num submergível para espeitar da janela a Grande Barreira de Coral australiana, escalar Machu Micchu e mascar folhas de coca, ouvir tango ou comprar livros nas fabulosas livrarias de Buenos Aires, mergulhar nas águas de Waikiki, em Honolulu, fazer o roteiro das ruas dos filmes e séries norte-americanas rodados em São Francisco, ficar encandeado no terraço de um último andar de Hong Kong (com os néones dos arranha-céus em volta, e a sua paleta de arquitectos, de Norman Foster a I. M. Pei), passear na rua de Wenscelau de Moraes em Macau ou ficar pasmado diante do pechisbeque luxuoso de Singapura valem uma volta ao mundo? Retórica, evidentemente.
“O que trouxera [Phileas Fogg] desta longa e cansativa viagem?”, questiona Verne, coloquialmente. “Nada, diz o leitor? Talvez; nada a não ser uma mulher encantadora, que, por mais estranho que pareça, fez dele o mais feliz dos homens! Muito francamente, quem não daria a volta ao mundo por muito menos?”, conclui o autor. Foi o caso.