Ainda não são oito horas da manhã e, apesar do dia, como muitas vezes acontece em Janeiro, ameaçar uns salpicos, a calçada em torno da igreja de São João de Deus, na lisboeta Praça de Londres, acolhe dezenas de automóveis que farão parte de um passeio de desportivos ingleses.
A iniciativa, organizada pelo departamento de automóveis clássicos do Automóvel Clube de Portugal, realiza-se já pelo 11.º ano consecutivo e a persistência do evento mostra os seus frutos à medida que os vários carros vão chegando. Há poucas caras que não se reconheçam quase automaticamente e o passeio depressa se transforma num encontro de amigos que em comum têm uma paixão especial por carros com história, particularmente os que possuem ADN britânico.
“Em Portugal, houve desde cedo um culto à volta dos carros ingleses”, considera Luís Cunha que, ano após ano, é um dos rostos da organização do evento. “Por isso, surgiu a ideia de fazer um passeio com os desportivos ingleses como mote.” O sucesso não se fez esperar e, ano após ano, o número de inscrições tem crescido (sendo que um carro e duas pessoas pagam 90€ pelo passeio, prova e almoço). A excepção foi precisamente este ano. Mas Cunha acha compreensível depois de, no ano passado, o passeio ter calhado precisamente no dia em que um dos piores temporais dos últimos tempos se abateu sobre Lisboa e arredores. “Acho que houve quem tivesse jurado para nunca mais”, brinca, ao mesmo tempo que sublinha o facto de, mesmo com as terríveis condições de 2013, não ter havido nenhum incidente a registar. O dia não deixa de ser recordado em cada conversa que se ouve enquanto o passeio fica cada vez mais cheio de preciosidades com rodas.
Pela caravana de mais de cem, exemplares para todos os gostos: Aston Martin ao estilo James Bond e do tempo em que a montagem ainda era feita, qual objecto raro, à mão; vários modelos da extinta Triumph, que deixou de fabricar em meados dos anos 80 do século passado; aguerridos MG. Por isso, ainda antes do tiro da partida para o passeio, a Praça de Londres transforma-se numa espécie de museu ao ar livre e de acesso gratuito. Não são apenas condutores e passageiros que espreitam pelos vidros ou que reparam num ou noutro pormenor. Vários curiosos desviam o seu caminho de sábado de manhã e fazem o mesmo.
Enquanto uns admiram, outros ajustam os últimos pormenores: afinal, alguns destes carros ostentam tanta sabedoria quanta necessidade de mimo e cuidados. Assim, e mesmo com o céu a ameaçar a qualquer altura uma chuveirada, há quem aproveite para puxar o brilho aos cromados, quem arrume uma vez mais o habitáculo, quem (re)verifique todos os níveis. Um destes, aliás, terá de ser reposto a meio caminho para muitos: o do combustível (alguns dos exemplares presentes têm “muitos cavalos a alimentar”). Mas até lá há ainda muito quilómetro a ser percorrido.
Assim que o primeiro carro passa a linha da partida, todos os outros accionam a ignição. Não há muita fumarada, ao contrário do que se poderia supor. Mas o cheiro que se gera é algo a que os nossos narizes, orientados pelas regulações contemporâneas de emissões, já não estão habituados. Um a um, e com road book a seguir, todos saem da Praça de Londres ainda antes das 10h. Deste ponto até à primeira paragem é cada um por si: pela frente, quase cem quilómetros de auto-estrada, primeiro em direcção a Norte; depois, rumo a Almeirim, onde a caravana se divide em dois grupos.
Enquanto a A1 é invadida por modelos cuja idade em alguns casos ultrapassa a dos seus condutores, seguimos a bordo de um muito britânico Range Rover Sport novinho em folha. Seria de julgar que tranquilamente deixaríamos a maioria dos carros para trás. Mas muitos destes exemplares não são apenas clássicos. São carros com veia desportiva e potência suficientes para se fazerem valer ao lado de outros acabados de sair da forma. Não é à toa que haja quem dispense uma visita à adega da Quinta da Alorna, onde nos é feita uma visita guiada por quase todo o processo vitivinícola, com direito a prova no final, e siga para um kartódromo, onde as acelerações são garantidas.
É o caso de António Dionísio que, oriundo de Castelo Branco, não chega a ir a Lisboa: “Todos os anos faço o mesmo: vou ter directamente ao kartódromo”, conta, ao mesmo tempo que na sua mesa ainda se discutem tempos, nomeadamente o feito por si ao volante de um Lotus Elan de 1967. É que a prova organizada pelo ACP requer “ciência”. “Não basta fazer o melhor tempo; é preciso a cada volta fazer melhor tempo que na anterior e para isso é preciso fazer muito bem as continhas antes da primeira volta”, explica António Dionísio. O truque é simples: “Deixar margem para poder melhorar”, resume.
Todos os anos, António faz a mesma coisa. Aproveita o dia para tirar um dos seus carros da garagem (ainda nos diz que tem vários, mas opta por não dizer quantos nem quais: “Hoje em dia parece mal”, desabafa) e segue sozinho de Castelo Branco ao ponto de encontro dos que chegam de Lisboa. “É acima de tudo uma maneira de encontrar amigos.” António não é caso único. Há ainda quem, desde a primeira edição, chegue do Porto ou de Évora, refere Luís Cunha.
Enquanto os modelos com mais vontade de brincar ficam pelo kartódromo, os restantes, após a paragem na Quinta da Alorna, seguem em caravana quase compacta. É Janeiro e o “fantasma do Inverno passado” teima em marcar presença com uma ou outra nuvem negra, lembrando o dilúvio de há um ano. Mas as previsões optimistas vão ganhando cada vez mais fulgor à medida que guiamos rumo à Quinta do Falcão, em São Pedro de Tomar.
Pelas estradas ribatejanas, uma espécie de carreirinho de relíquias passa por campos de cultivo submersos, mas também por outras zonas que denunciam um Inverno brando, em que salta à vista o verde enfeitado de largas manchas floridas. Com o sol a conseguir furar entre as nuvens, não fosse o frio e até arriscaríamos a dizer que parecia um dia de Primavera.
Aqui e ali, há um tractor que encosta para o seu condutor admirar os carros que passam ou gentes que das janelas das suas casas olham espantadas para estas viaturas que parecem, de uma maneira ou de outra, saídas de um qualquer filme (inglês, claro!). Até no posto de abastecimento, onde a mulher na caixa de pagamento não resiste à curiosidade e vai perguntando, cliente a cliente, que carro é aquele, de que ano...
Até que se chega à meta. E os grupos turístico e desportivo voltam a reunir-se para trocar histórias e momentos. De hoje e de há onze anos. Do tempo terrível que esteve no ano anterior (“houve alturas em que achei que já não ia sair dali”, diz alguém em conversa ao nosso lado) e de quão bem-recebidos foram no ano passado na Quinta do Falcão — “chovia torrencialmente, faltou a luz... e mesmo assim foram incansáveis: desdobraram-se!” e, por essa razão, explica Luís Cunha, foi decidido repetir o local de chegada e almoço, ao contrário do que sucedeu em anos anteriores.
As despedidas fazem-se com um gostinho a terras de Sua Majestade. O sol volta a esconder-se e os pingos de chuva regressam. “Porquê um passeio destes em Janeiro?”, perguntávamos a Luís Cunha logo pela manhã, tendo em conta o número de cabriolets. “Uma questão de calendário”, dizia-nos. Mas, arriscamos nós, em que outra altura se conseguirá reproduzir tão bem o espírito britânico, entre chuvas e neblinas, entrecortadas por campos floridos e um sol envergonhado?
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Informações
Para participar no passeio é necessário, além de possuir um modelo desportivo britânico, ser-se sócio do ACP. O valor da inscrição de um carro com dois ocupantes este ano foi de 90€ (visita à Alorna, kartódromo e almoço)
Quinta da Alorna
2080-187 Almeirim
Tel.: 243 570 700; 243 570 706 (loja)
A Quinta da Alorna está aberta a visitas diariamente, sendo possível adquirir os vários produtos da quinta na loja, assim como uma selecção de iguarias regionais. A loja está aberta de quarta a sábado, das 10h às 18h30, e de domingo a terça, das 10h às 18h. Encerra para almoço, das 12h30 às 14h.
Quinta do Falcão
São Pedro - Tomar
Tel.: 249 381 211
A Quinta do Falcão, que tem à sua frente o cavaleiro Rui Salvador e a família, abre apenas sob reserva para eventos.
A Fugas participou no passeio a convite do ACP