Nos primórdios dos motociclos, não existiam motos de diferentes características. Não havia motos de estrada, cruisers, de turismo, choppers, desportivas, naked, adventure-touring, supermotards, trails, motocross, scooters. Nem sequer diferenciação entre motos de estrada e de fora de estrada. Eram todas “normais”, motos casuais e clássicas, para circularem em estradas pavimentadas sem características específicas.
A normalidade era tal que, para manter a procura em alta, houve necessidade de iniciar a costumização, satisfazendo distintos desejos de diferentes “tribos”. Foi assim que, nos anos 1950, em Inglaterra, surgiram as primeiras café racers, motos de estrada, modificadas para se tornarem mais rápidas nas corridas entre cafés.
O termo scrambler, “alguém que escala”, surge no final daquela década para designar as motos modificadas para correrem fora de estrada. As alterações são bem visíveis: o volante mais largo e reforçado para suportar quedas, o escape subido e colocado numa zona superior para estar longe do chão, suspensões com maior curso e rodas maiores com pneus que pudessem ser usados fora do asfalto. Basicamente, as mudanças necessárias para as motos ficarem mais versáteis e assim ganharem corridas do ponto A ao ponto B, independentemente do caminho escolhido.
Sempre que falo de motos “normais” fora de estrada, penso em Steve McQueen (e no seu duplo Bud Ekins), no filme de 1963 Fugindo do Inferno, com uma Triumph TR6 Trophy Bird, a desafiar as leis da gravidade, passando por cima de cercas da II Grande Guerra, tentando fugir das forças nazis.
Com a popularidade das scrambler a crescer, nos anos 1960 os construtores renderam-se à moda e começaram a lançar motos já com estas configurações e com o nome de scrambler, origem das actuais motos de trail. Talvez a mais famosa até hoje tenha sido a Triumph Scrambler mas também ficou conhecida a Honda CL350.
A BMW R nineT Scrambler que tenho à minha frente para experimentar, com jantes de alumínio e pneus de estrada, não me parece a moto mais preparada para fazer off road. Mas com o mau tempo que se faz sentir não creio que me vá aventurar por esses terrenos. Entre outros produtos, pode-se configurar a moto com jantes de raios e pneus mistos disponíveis como equipamento opcional pela BMW Motorrad.
Decido então experimentar a moto como um belo domingueiro que vai dar uns pequenos passeios cheio de estilo e alegria. A grande diferença é que tenho de o fazer à chuva.
Sentado na BMW nineT R1200 Scrambler não imaginava o que ia sentir ao rodar a chave da ignição. Já de capacete posto, rodo a chave e, mais que a surpresa do magnífico ronco de motor a sair pelo escape, foi o solavanco que levei da moto.
Foi a minha primeira experiência com o motor Boxer R1200 e, como o veio do motor está no sentido da moto, quando aceleramos a moto inclina para o lado direito. A reacção, assustada, foi de firmar as mãos nos punhos para segurar a moto. Foi uma sensação nova para mim, parecia que estava sentado em cima de um animal vivo. E um animal com aquele ronco mete respeito. Estou em cima de uma besta de 220kg e com 110cv. E continua a chover.
Um desafio com muito respeito. A sorrir da adrenalina e apreensivo pela responsabilidade, engreno a embraiagem e coloco a caixa de velocidades em primeira… Não entrou a mudança?! Não ouvi nada, não senti nada. Mas entrou, sim. A embraiagem a seco de disco simples e accionamento hidráulico e a caixa de seis velocidades com veio de sincronização formam uma deliciosa parelha.
Largo a embraiagem e começo a experiência. O desenho da moto deixa-nos numa posição confortável, sinto-me bem encaixado. O tracejado branco no alcatrão molhado começa a passar por baixo. Com receio da “besta”, conduzo com precaução e suavidade, sem rolar muito o punho direito, vou-me deliciando em subir as velocidades da caixa.
E o motor? Um bicilíndrico a quatro tempos. Duas cabeças gigantes de 600cc, cada uma a sair horizontalmente para cada lado do bloco do motor. Um motor que parece não caber na moto. Se a moto é grande por fora, ainda parece maior por dentro, temos motor que nunca mais acaba. Com uma potência de 110cv e um binário de 116 Nm às 6000rpm tenho sempre motor. Sempre! E que gozo que isso me dá.
Se estivermos adormecidos, esta “doce besta” é moto para nos voltar a acordar e fazer sorrir como crianças. “Doce”, porque apesar de ser um motor bicilíndrico podemos subir as mudanças com pouca rotação sem que o motor se queixe, não “batendo” em mudanças altas com baixas rotações. Mas se enrolarmos o punho tem binário para passar de doce a besta num ápice.
Beleza retro
A nineT Scrambler não passa despercebida: tem um design bastante apelativo e ninguém fica indiferente à beleza da possante moto. O grande depósito de combustível de puro aço em cinza mate, o volante bastante largo e numa posição elevada (com uns espelhos colocados demasiado perto do condutor), o monobraço atrás a mostrar a bonita jante estrelada em alumínio com 17” (maior à frente com 19”), os colectores bem visíveis e serpenteando até às duas ponteiras douradas junto do banco, um banco de cor camel, com costuras e muito bonito mas um pouco duro, confortável mas para pequenos percursos. Em suma, uma obra de fazer parar as pessoas para tirar fotografias nestes tempos modernos com as modas retro.
Já o belo farol redondo faz pandã com o único manómetro que exibe um velocímetro analógico e várias informações digitais — temperatura do óleo do motor, horas, vários trips, luzes avisadoras da caixa, da gasolina, etc.. No meio disto tudo, senti a falta de um conta-rotações para ver o ponteiro a trepar rapidamente a sua escala.
Estou sentado num restaurante e continua a chover lá fora, onde consigo ver a “besta” esperando por mim. Vejo um casal na casa dos 60 anos, juntinhos debaixo do chapéu-de-chuva que os protege, a quem a moto não passou despercebida, ficar mais de cinco minutos a deliciar-se com ela. Deviam estar a viver outros tempos nos dias de hoje e nem a chuva os demoveu de junto da bela BMW R nineT Scrambler.
Não estavam as melhores condições meteorológicas para me ter envolvido nesta relação. Uma moto com potência e binário que, com piso molhado, se não for tratada com amor pode “morder”; uma moto minimalista sem protecções contra o vento, onde a água salpica por todo o lado; umas suspensões “secas” e duras que em estrada lisa se comportam lindamente mas ao mínimo buraco nos faz sofrer, e bem. As condições para fazer uma viagem a dois também não eram as melhores, mas esta não é a moto ideal para confortáveis viagens, muito menos a dois.
Também não é uma moto pensada para agradar a gregos e troianos. É uma moto minimalista, sem grandes apetrechos, reduzida ao essencial, pura e dura. De condução fácil a qualquer tipo de exigência, pode-se escolher entre passear uma obra de qualidade e design num domingo soalheiro ou ser o Steve McQueen cá do sítio e fazer os cavalos gritar pela juventude e ter o prazer de “brincar” às motos.
Tão perto e tão longe
Terá sido decerto o detalhe que mais desagradou ao longo dos dias em que me passeei nesta scrambler: a posição dos espelhos que, certamente respeitando o código de estética desta BMW R nineT Scrambler, parecem ter sido pensados mais para enfeitar do que propriamente para utilizar. Colocados demasiado perto do olhar do condutor, não permitem um bom ângulo de visão, sendo mais as vezes que se tem de virar a cabeça do que se pode confiar no que os retrovisores mostram. E, a bem do conforto e da segurança, não seria descabido sacrificar o design.
Bons sons
É uma das (várias) boas surpresas que se tem assim que se roda a chave na ignição: o magnífico ronco que se solta do escape de ponteira dupla. E não se pense que é só música para os ouvidos. O barulho corresponde exactamente àquilo que se pode esperar desta mota que mais parece um animal cheio de vida e com muito para dar. Até alguns coices... Do ponto de vista do design, os colectores, bem visíveis e serpenteando até às duas ponteiras douradas junto ao banco, mais parecem uma obra de arte, casando perfeitamente com todo o conjunto.
De encher as medidas
Não é mentira se se disser que esta BMW R nineT Scrambler tem vários atributos com os quais pode conquistar uma legião de fãs. Mas há um que se destaca: o motor Boxer. O bicilíndrico a quatro tempos exibe duas cabeças gigantes de 600cc, cada qual a sair horizontalmente para cada lado do bloco que parece não caber na moto. E o tamanho neste caso não engana. A verdade é que temos motor que nunca mais acaba. Com uma potência equivalente a 110cv e um binário máximo de 116 Nm às 6000 rpm, não precisa de se esforçar para encher as medidas.
Bonito, mas...
Tudo nesta scrambler parece ter sido pensado ao mais ínfimo pormenor no sentido de transmitir uma harmonia estética. Por isso, não nos surpreende a existência de um só manómetro, bem redondinho, a fazer pandã com o farol que marca toda a frente. Naquele é visível um velocímetro analógico e várias informações num pequeno ecrã digital — temperatura do óleo do motor, horas, luzes avisadoras de mudança de caixa, etc. Bonito, sem dúvida. Mas, numa moto com a musicalidade que esta tem, sente-se a falta de um conta-rotações para ver o ponteiro a trepar ritmadamente a sua escala.