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  • A Grand Place é a praça
principal da zona histórica de
Lille e tem um nome oficial
mais comprido: Place Charles
de Gaulle, em homenagem ao
general francês, que ali nasceu
    A Grand Place é a praça principal da zona histórica de Lille e tem um nome oficial mais comprido: Place Charles de Gaulle, em homenagem ao general francês, que ali nasceu Bruno Lisita
  • a sala de

exposições do 

Louvre-Lens;
    a sala de exposições do Louvre-Lens; Bruno Lisita
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exposições do 

Louvre-Lens;
    a sala de exposições do Louvre-Lens; Bruno Lisita
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Piscine, em 

Roubaix;
    La Piscine, em Roubaix; Bruno Lisita
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central de 

Arras
    A praça central de Arras Bruno Lisita

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França em quatro cidades reinventadas

Por Mara Gonçalves

Passeámos por Lille, Roubaix, Lens e Arras, quatro cidades que mesclam geografias e história. E que se reinventam através da cultura.

Lille, a capital do Norte

Se fechássemos os olhos e nos deixassem numa ruela do centro histórico de Lille, por momentos não teríamos a certeza se ainda estaríamos em França ou já para lá da fronteira belga, tantas são as influências de uma e de outra cultura — na arquitectura, na gastronomia, no consumo de cerveja (maior do que o de vinho), na língua. Uma sensação que voltaríamos a experienciar de forma mais inquietante em Arras, onde as fachadas que rodeiam as duas praças principais nos transportam automaticamente para o país vizinho. Mas já lá vamos.

Por agora, percorremos as ruas de paralelepípedos de Vieux Lille, com os seus edifícios de dois andares e águas-furtadas, as fachadas estreitas, muito estreitas, feitas de tijolos cor de barro ou cobertas em pedra, numa palete de pálidos e harmoniosos tons: creme, amarelo torrado, castanho, acinzentado. No piso térreo, um suceder de lojas de ar luxuoso, pastelarias, restaurantes e esplanadas, numa das principais zonas de convívio de uma cidade jovem, onde cerca de 25% da população tem menos de 25 anos (e centro do pouco turismo que a cidade ainda tem, comparada com as grandes urbes francesas).

Começamos o passeio pelo centro histórico na Rue de la Monnaie onde, como o nome deixa antever, “o dinheiro da cidade era feito quando passou para o domínio francês”, conta a guia Agnès Pascal. A região pertencia então ao Condado da Flandres, quando Luís XIV tomou a cidade e reconstruiu aquele quarteirão, instaurando regras de construção que aproximaram a arquitectura do centro histórico de Lille às influências francesas, “inventando este estilo franco-lillois”, com edifícios que terminam em linha recta e elementos escultóricos a exibir a riqueza de cada proprietário.

Junto ao chão, encontramos aqui e ali largas portadas de madeira para as caves, vestígios da Idade Média, quando aqui se concentravam as fábricas de têxteis, uma das indústrias predominantes da região. “Antes da Revolução Industrial, as pessoas viviam nessas caves em condições muito precárias, tanto que impressionaram Victor Hugo quando esteve em Lille e levaram-no a denunciá-lo em Les Châtiments”, recorda Agnès. “Un jour je descendis dans les caves de Lille / Je vis ce morne enfer. / Des fantômes sont là sous terre dans des chambres, / Blêmes, courbés, ployés; le rachis tord leurs membres / Dans son poignet de fer

A zona, entretanto abandonada e em declínio, só foi renovada na década de 1980 e na montra de uma loja na Place aux Oignons há fotografias dos finais dos anos 1970, mostrando o recente antes de uma zona que a reabilitação e o fulgor da nomeação como Capital Europeia da Cultura em 2004 fizeram os preços dos imóveis “subirem até dez vezes mais”. Acolher aquele que é o principal evento cultural promovido pela União Europeia repôs a cidade no mapa, foi o impulso que a trouxe ao futuro, lavando a cara ao antigo e erguendo novas e modernas valências (o complexo Euralille é o exemplo incontornável). Lille reinventou-se como espaço de cultura e, mais de dez anos depois, a influência continua tão presente que é inevitável que todos nos falem disso.

“Morei vários anos fora e quando voltei a Lille, em 2000, a cidade tinha mudado muito”, recorda Virginie Dumoulin, do departamento de marketing do aeroporto de Lille. “Lembro-me que vinha a conduzir desde a Bélgica e liguei ao meu marido a dizer que já não conhecia nada, que estava perdida”, ri-se. “As fachadas foram todas renovadas. Era a mesma cidade, mas estava mais bonita e maravilhosa.”

É desta altura a conclusão da Catedral Notre-Dame de La Treille, um edifício neo-gótico tão inusitado quanto a sua história. O primeiro projecto, de imponência astronómica (e do qual existe uma maqueta no interior da igreja), data de 1854, quando começou a ser construído, de trás para a frente. As guerras e as dificuldades económicas que assolaram posteriormente a região refrearam as dimensões do edifício, mas a fachada principal só viria a ser concluída em 1999, num moderno e polémico projecto arquitectónico de Peter Rice. Por fora, a parede de placas de mármore português unicamente suspensas por cabos de aço dá-lhe um ar de ainda estar por concluir, mas, uma vez no interior da catedral, o mármore translúcido ganha tons de rosa e lilás e aquela obra de engenharia um novo encanto.

Seguimos as linhas negras sobre o chão cinzento — memória gravada a pedra dos canais de água que outrora serpenteavam a cidade — e terminamos o passeio na Place Charles de Gaulle (nome oficial da Grand Place, em homenagem ao general francês nascido em Lille). É a praça principal da zona histórica da cidade, palco de alguns dos seus principais monumentos. Vemos o campanário da câmara do comércio surgir atrás dos edifícios; lá ao fundo, espreitaremos por uma viela o outro campanário da cidade, junto à câmara municipal, que está inscrito como património mundial da UNESCO desde 2005 e cuja vistas desafogadas a 104 metros de altura merecem uma visita, garantem-nos.

Quando lá estivemos era, no entanto, o edifício do La Voix du Nord (onde, durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial, funcionou secretamente o jornal regional) que se destacava entre os restantes edifícios da praça, graças à instalação do artista JR, que cobriu a fachada com uma fotografia antiga que irá desaparecendo, exposta aos elementos, parte do Renaissance, o mais recente festival do projecto cultural Lille3000 (herança directa da Capital Europeia da Cultura) e que levou instalações de vários artistas internacionais aos principais monumentos e ruas da cidade (termina a 17 de Janeiro).

Minutos depois, entramos na Vieille Bourse, considerado pelos locais o edifício mais bonito de Lille, e deparamo-nos com outra instalação, feita de frutas gigantes e coloridas, que convivem momentaneamente com a habitual feira de livros e velharias sobre as arcadas do átrio interior. “Às vezes há pessoas a jogar xadrez e, no Verão, vêm dançar tango ao domingo à noite”, conta Agnès. Estamos a terminar a visita guiada quando toca um sino distante. “Oh!, que pena. Às vezes, entoam La chanson du p’tit quinquin, de Alexandre Desrousseaux, uma antiga canção de embalar que as mães cantavam no dialecto regional enquanto trabalhavam a seda.” E com um singelo pormenor voltamos por momentos à história da cidade, à mescla de culturas que lhe cose o espírito.

Roubaix, a cidade industrial que uma piscina-museu fez renascer

Roubaix, situada 15 quilómetros a norte de Lille, ficou conhecida na região como “a cidade das mil chaminés”, cognome surgido com a indústria têxtil que a construiu. Mais de 95% da população local trabalhava então nas fábricas e vivia ainda aglomerada em bairros operários com parcas condições de higiene quando, em 1932, o presidente da autarquia decidiu construir uma piscina e banhos públicos acessíveis a todos. “Tinham de pagar entrada, mas era muito barato e podiam tomar banho durante 20 minutos”, começa por contar Ingrid Wacheux, guia do La Piscine Musée d’Art et d’Industrie André Diligent, o iPad sempre pronto para mostrar fotografias antigas.

“A ideia era que a piscina fosse como um templo”, descreve, onde não faltavam luxos como mármores importados da Bélgica, duches para homens e para mulheres, sala de pesos, lavandaria, cabeleireiro ou um jardim verdejante rodeado pelas paredes do edifício, “como o claustro de um mosteiro”, para que os operários pudessem ouvir finalmente o silêncio. Foi ali que grande parte da população aprendeu a nadar, até que o idílico edifício em Art Decó encerrou em 1985, porque o tecto começava a ruir. A procura de um local para instalar um museu de arte e de indústria em Roubaix devolveu a velha piscina à cidade em 2001.

E é quando já conhecemos toda a sua história que por fim a vemos, agora um estreito corredor de água ladeado por alguma estátuas do museu, para as quais nem olhamos, atraídos pelos enormes vitrais que desenham o nascer e o pôr do sol, pelas varandas brancas, pelos mosaicos no rebordo da piscina “inspirados na pintura japonesa A Grande Onda de Kanagawa”, pela fonte de Poseidon (ou Neptuno) que ainda goteja sobre o espelho de água e que era o ponto de encontro da população que, desconhecedora de mitologias, apelidava-a simplesmente de leão.

Só depois, e talvez porque Ingrid é uma contadora nata das pequenas histórias, é que descobrimos as peças do museu, percorremos as salas com os velhos catálogos dos tecidos produzidos na região, as pinturas de Rémy Coggie, as esculturas de Rodin e Camille Claudel, as peças de cerâmica, os desenhos ou a exposição temporária com obras de Marc Chagall. “Quando eu era pequena, a cidade era suja, cheia de fábricas velhas e muita gente desempregada. Agora começa a ser uma cidade de cultura”, diz Ingrid, de 25 anos, num entusiasmo que não desarma.

Lens, a cidade mineira que o Louvre pôs no mapa

Uma história semelhante espera-nos um pouco mais a sul. Uma cidade pobre, que a geografia transformou num palco de guerra sucessivamente destruído, que o declínio da indústria mineira votou ao esquecimento dos tempos. Uma cidade pobre, que procura agora renascer assente na história (há vários cemitérios e monumentos em homenagem às vítimas da guerra, principalmente da I Guerra Mundial, espalhadas pela região e núcleos museológicos que contam o passado mineiro da urbe), na gastronomia regional e na produção artesanal de cerveja, num novo e moderno museu que a chancela Louvre pôs definitivamente no mapa.

O Louvre-Lens, um monumental open space de paredes de vidro e linhas marcadamente contemporâneas, começou a ser construído em 2003 e abriu portas em 2012, no dia de Santa Bárbara, padroeira dos mineiros, a 4 de Dezembro. A própria arquitectura do espaço procura homenagear o passado ligado à actividade, replicando na escadaria as montanhas negras em formato de cone que vemos lá fora, umas das maiores na Europa, onde se fazia a extracção do carvão.

Posto isto, esqueçamos tudo o que a nossa imaginação automaticamente associa ao Louvre. No museu de Paris a colecção está dividida em departamentos temáticos numa sucessão de salas imponentes e muitas obras de pintura e escultura. Aqui, as 200 peças vindas da capital francesa estão expostas num único espaço, com o propósito de criar um diálogo entre géneros, culturas e épocas. É um caminho cronológico, que começa com esculturas das civilizações do Mediterrâneo, da Mesopotâmia e do Egipto, lado a lado, para que o visitante possa encontrar as semelhanças e as diferenças entre as manifestações artísticas das civilizações predominantes a cada época e verificar até em alguns casos a sua evolução.

Além da exposição permanente (cerca de 10% da colecção é substituída todos os anos) e várias exposições temporárias, há uma sala visitável no piso inferior onde muitas obras estão armazenadas ou a serem restauradas. Um conceito muito diferente do Louvre a que nos habituámos, mas que já leva mais de 500 mil visitantes por ano a Lens.

Arras, o encanto flamengo

Estamos no topo do campanário da câmara municipal de Arras e daqui avistamos toda a cidade e o verde circundante, numa arrebatadora vista a 360 graus. À nossa frente temos a Place des Héros que, com a Grand’Place, um pouco mais à esquerda, forma a jóia arquitectónica da cidade, o perfeito postal ilustrado, com as suas fachadas estreitas de pedra, piso térreo em arcadas e frontão em triângulo ondulado, características do estilo flamengo barroco do século XVII.

Só já lá em baixo, e com o olhar guiado por Pascal Loosfelt, encontraremos ligeiras diferenças entre os edifícios, num conjunto amplamente harmonioso. “Se repararem, há fachadas totalmente cobertas em pedra e outras com tijolo, umas têm três janelas laterais e outras apenas uma, revelando o nível de riqueza de cada proprietário”, indica o guia. Ao centro, as praças que agora vemos despejadas de vida (e transformadas em parques de estacionamento) foram, desde a Idade Média, ocupadas por mercados e concentram ainda hoje grande parte do comércio e restauração da cidade sob as suas arcadas.

As duas praças, incluindo a câmara municipal e o campanário, e alguns dos principais monumentos da cidade foram totalmente reconstruídos depois de terminada a I Guerra Mundial, quando mais de 80% da cidade ficou destruída. “Foi tudo reerguido em 15 anos”, conta Pascal. Noutras ruas da cidade, que percorremos agora, os novos edifícios foram construídos ao estilo Art Deco, então em voga, alguns integrando, no entanto, elementos regionais, como o tijolo ou motivos decorativos alusivos às principais actividades comerciais da época.

Pouco depois, já na Rue Paul Doumer, encontramos o imponente edifício da abadia de Saint-Vaast, outro ex-líbris de Arras, ocupado desde 1832 pelo Museu de Belas Artes da cidade e, mais recentemente, por uma mediateca e obras do Palácio de Versalhes, numa parceria inédita com o antigo castelo real parisiense. Quando saímos, já a noite cai sobre a cidade, iluminando ruas e monumentos de um encanto de conto de fadas.

Quatro cidades, uma história comum de sucessivos domínios e renascimentos, uma identidade que bebe influências de todo esse passado e a mesma vontade de se reinventar através da cultura, cada uma à sua maneira. Não são cidades muito grandes, turísticas ou repletas de atracções e de actividades, mas juntas formam um eixo perfeito para uma escapada entre arquitectura pitoresca, museus e gastronomia.

A Fugas viajou a convite da easyJet

GUIA PRÁTICO

Como ir

Desde o final de Outubro que a easyJet voa directamente de Lisboa para Lille, disponibilizando três ligações por semana (terça, quinta e sábado), com preços desde 29,49€/ida. O aeroporto fica junto à periferia da cidade (a viagem de autocarro custa 8€), a menos de 20 minutos do centro e das duas principais estações de comboios (www.sncf.com). A linha de comboio de alta velocidade (TGV) deixa a cidade a uma hora de Paris, a 35 minutos de Bruxelas ou a 80 minutos de Londres, existindo igualmente ligações de comboio para Roubaix (15 minutos), Lens (60 minutos) e Arras (20 minutos em TGV).

Onde comer

Em Lille, a Comptoir 44 (44 rue de Gand; www.comptoir44-lille.fr) é uma típica cervejaria parisiense, com paredes de tijolo, decoração requintada e acolhedora e uma cozinha inspirada na gastronomia tradicional francesa, com menus a 19€ e 24€ e opções à carta. Para provar algumas das iguarias regionais, o Le Barbue d’Anvers (1 bis rue St Etienne; lebarbuedanvers.fr) é um restaurante inspirado nos antigos estaminet (tabernas), com gastronomia típica da região, muita cerveja e um ambiente descontraído q.b. (experimente o típico carbonade flamengo, um guisado doce de carne de vaca servido com batatas fritas). Para os gulosos, a não perder os merveilleux da pastelaria Aux  Merveilleux (67 Rue de la Monnaie; www.auxmerveilleux.com), uns pequenos merengues forrados com creme e flocos de chocolate feitos mesmo ali na montra; e a Méert que, fundada em 1761, será uma das pastelarias mais antigas de França e paragem obrigatória de muitas personagens ilustres em Lille (os bolos mais famosos são as gaufres — semelhantes às bolachas belgas — com baunilha de Madagáscar; mas até só uma visita ao edifício histórico e requintado vale a pena).

Em Lens, a Le Pain de la Bouche (41 bis rue de la gare; lepaindelabouche.fr) também é um estaminet, mas aqui tudo está decorado ao pormenor para nos transportar para outra época, ou pelo menos até às memórias de infância. O menu está impresso em formato de jornal, come-se à luz das velas, há mobiliário e relíquias vintage em cada recanto. A especialidade são as faluches gratinées (uma base de pão, estilo pizza de massa alta e fofa, que pode levar os mais variados ingredientes por cima e é gratinada no forno), mas há outros pratos regionais e várias cervejas artesanais produzidas localmente.

Já em Arras, recomendamos o L’Ambassade (18 Grand Place; www.lambassadedarras.fr), que integra um piano bar no primeiro andar e um estreito restaurante na cave, com uma cozinha inspirada na gastronomia e nos produtos franceses mas com um toque contemporâneo.

Informações

Turismo de Lille: www.lilletourism.com e www.visitlilles.com

Turismo de Arras 

Turismo de Lens 

Turismo de Roubaix

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