Fugas - Viagens

  • Sousa Ribeiro
  • Sousa Ribeiro
  • Sousa Ribeiro
  • Sousa Ribeiro
  • Sousa Ribeiro
  • Sousa Ribeiro
  • Sousa Ribeiro
  • Sousa Ribeiro
  • Sousa Ribeiro

Multimedia

Mais

Ver mais

Era uma vez na Arménia

Por Sousa Ribeiro

A proximidade do Natal é apenas um pretexto para viajar pela primeira nação a adoptar o cristianismo como religião oficial, um país vítima da História mas com uma herança cultural e tão hospitaleiro que difícil mesmo é resistir aos seus segredos por muito mais tempo.

-Ierevan?

Deixo-me conduzir até ao carro onde o motorista, afundado no banco e com um boné que lhe cobre parte do rosto, tem um despertar agitado quando ouve o som produzido pelos nós dos dedos tamborilando no vidro.

O sol, ainda baixo, despontava no horizonte, lançando os seus raios pontiagudos.

Abro a porta e acomodo-me, sem que o homem sentado ao volante se digne a fitar-me ou mesmo a dar-me os bons dias. Sou o único passageiro com destino à capital da Arménia.

- O carro está com um problema, temos de ir devagar - diz-me, finalmente, quando Tbilisi começa a ficar para trás e os campos, como uma manta de retalhos de verde e amarelo, vão emoldurando a janela, enquanto no interior se eterniza um silêncio que parece incomodar-me mais a mim do que a ele.

Na fronteira, depois de carimbado o passaporte, junto-me ao motorista que me espera já em território arménio, sorrindo-me enquanto troca os cartões do telemóvel.

- Tudo bem? Algum problema?

A mudança de humor é notória. Uns minutos mais tarde, detém-se, numa estação de serviço, no sopé de uma colina dominada por uma igreja.

- O gás é mais barato na Arménia, elucida-me, como se de repente se arrependesse da sua antipatia inicial e tudo, qualquer gesto ou situação, carecesse de uma explicação.

- Anda. Vamos tomar um café.

Em momento algum me perguntou o nome e eu, talvez influenciado pela primeira imagem que ele produzira em mim, também calei a minha curiosidade. Já no interior da viatura, ofereceu-me uma lata de refrigerante que acabara de comprar.

- Gosto muito de Coca-Cola. E de mulheres ucranianas. E tu?

O carro retomou a marcha; ao fundo, recortava-se um lago com as suas águas paradas, de um verde escuro, e para trás, perdendo-se no horizonte, montanhas com linhas bem definidas.

O trânsito é praticamente inexistente, evitando a proximidade ao Azerbaijão, com quem a Arménia está de relações cortadas.

De repente, como quem sai de um longo período de hibernação, começa a relatar-me episódios do seu passado, enquanto relanceia a paisagem e por vezes quase ignora a estrada que vai serpenteando, sempre a descer, por um cenário belo e silente. Como quem adivinha um certo receio da minha parte, enaltece as suas qualidades ao volante:

- Antes, o melhor era o Michael Schumacher. Agora sou eu, garante, ao mesmo tempo que se serve do retrovisor para dar um ligeiro toque no boné. 

Regressa ao mutismo e, uns quilómetros mais à frente, a sua expressão torna-se séria, envolta numa bruma de melancolia, como um céu azul que subitamente se cobre de nuvens cinzentas.

- Este país é cada vez mais pequeno. Porquê?

Como não obtém resposta, perscruta de novo o cenário, como se nele estivesse escrita a história da Arménia, e dá início a um relato manchado de sangue, recordando a tragédia arménia ao longo do século passado e evocando, com mais detalhe, provavelmente por estar tão clara como a água na sua memória, a experiência dramática e pessoal do conflito com o Azerbaijão. Uma lágrima desponta quando recorda o amigo que, conduzindo um carro armadilhado, se fez explodir contra um tanque inimigo, outras vão tombando pelo rosto e a voz embarga-se-lhe no momento em que lembra a sua existência como comandante de uma brigada de 120 homens durante esse período turbulento que se prolongou por seis anos (entre 1989 e 1994), provocando a morte de 25 mil azeris e cinco mil arménios em luta pela posse da região de Nagorno-Karabakh – no rescaldo da II Guerra Mundial, foi atribuída pela URSS ao Azerbaijão mas os habitantes, pouco mais de 130 mil, não abdicam da sua identidade arménia, posta em causa quando uma declaração unilateral, embora sem reconhecimento internacional, transformou o enclave num estado independente.

- Eles podem ter mais dinheiro. Mas os arménios são mais fortes.

À nossa volta reina a serenidade e a panorâmica, sob um céu com escassas nuvens, convida a apreciar as tonalidades que vão do dourado ao vermelho, do verde ao amarelo.

Uma longa avenida, como um risco, atravessa a cidade de Ijevan. A manhã vai a meio. O motorista estaciona a viatura e pergunta-me:

- Qual é a marca que fumas?

Recusando-se a aceitar o dinheiro que lhe estendo, sai e demora-se uns breves minutos.

- Não havia. Comprei este. Estás no meu país, um país hospitaleiro — e oferece-me um refrigerante e os cigarros. 

A Arménia continua a exibir matizes outonais, a natureza encarrega-se de exacerbar a sua beleza até o asfalto desaguar em Dilijan.

- É uma cidade antiga.

Faz-se um silêncio.

- Claro que é uma cidade antiga; na Arménia não há cidades novas. 

A uma pausa sucede-se outra, quase tão breve como a anterior, numa das margens do lago Sevan.

- Podes tirar umas fotografias. Eu espero.

Os olhos deslizam por aquelas águas calmas, como um espelho imenso, numa quietude que exacerba desde já o meu desejo de voltar com mais tempo, como alguém que não se contenta com a superfície mas que está também decidido a mergulhar. Por agora, a falta de intimidade com os lugares é compensada, ainda que de forma ténue e limitada, por um conhecimento que será aprofundado sobre o carácter das gentes deste país com três milhões e meio de habitantes (a diáspora representa já mais de quatro milhões).

- Fica com estas moedas. Não precisas de mais de 100 dram. São apenas três estações até ao terminal de autocarros, onde podes cambiar dinheiro. Adeus.

Comovido, caminhei até à plataforma do metro.

Um poço fundo

As pessoas acomodam-se em cima do motor, ao lado, o motorista do pequeno autocarro, que geme e se queixa de uma vida longa e dura, fuma e recolhe o dinheiro de quem se vai apeando. Saio num cruzamento e sigo, a pé, pela estrada, ao longo de um vale, por entre terrenos cultivados e vinhedos; o vento cantava; ao fundo, banhado por uma luz cor de chumbo, recorta-se o mosteiro de Khor Virap.

Algumas centenas de visitantes andam pelo adro e, junto ao pórtico central da igreja, homens e mulheres, de rostos felizes e alinhados como uma guarda de honra, vivem numa inquietação que desaparece quase de imediato e se transforma em euforia — os noivos surgem, sorridentes, e alguém, saindo da multidão, lhes oferece duas pombas que o casal observa antes de lhes afagar a penugem e libertar nos céus com as suas nuvens baixas e cinzentas que por vezes deixam ver fragmentos dos cumes nevados do monte Ararat, erguendo-se, imponente, a mais de cinco mil metros.

A tarde avança.

Já a havia observado no interior do mosteiro, com os seus cabelos negros, a chama das velas dançando-lhe no rosto e realçando uma manifestação de fé que me comoveu e aprisionou o meu olhar.

- Importa-se de me tirar, por favor, uma fotografia, a mim e à minha família?

Dela emanava um sorriso bonito, uma expressão dócil. Eu já a fotografara mas ela não se apercebera do meu gesto furtivo. Tatev Sinanyan ausentou-se por instantes e regressou seguida de um grupo numeroso. Após as fotos, manteve um diálogo com familiares e amigos, a curta distância e de costas voltadas para mim.

- Os meus pais convidam-no para jantar na nossa casa. São apenas 30 quilómetros e nós temos carro. 

Tatev Sinanyan recusava-se a aceitar os meus argumentos mas parecia resignada quando, ao fim de algum tempo, prometi voltar um dia, para a rever, a ela, à família, ao país que já me fascinava.

- Promete?

Khor Virap significa poço profundo e nele passou Gregorio, o Iluminador, patrono da igreja apostólica arménia e conhecido no país como Grigor Lusavorich, 14 anos da sua vida, período ao fim do qual conseguiu converter o rei Tirídates à religião cristã. Corria o ano de 301 d. C., que marcava o fim do paganismo e o início de uma nova era — ainda antes de Roma, a Arménia tornava-se na primeira nação a adoptar o cristianismo.

Tatev Sinanyan, acompanhada de uma amiga, continua sentada ao meu lado, num muro de pedra. Gosto de a ouvir, de apreender o seu orgulho no país, das histórias que me conta; e gosto daquele sorriso que parece esconder uma tristeza que, de tão grande, não cabe neste mundo, como se ela, sozinha, encarnasse o sentimento de um povo.

- Tenho dúvidas de que haja uma nação com uma fé tão profunda em Deus como a Arménia. O cristianismo, difundido por Tadeu e Bartolomeu, dois discípulos de Jesus, penetrou no nosso país entre os anos 60 e 68 d. C.; mas, uma vez que o paganismo era a religião oficial, espalhou-se quase em segredo ao longo de mais de dois séculos.

As nuvens não se desprendem do monte Ararat, para onde, como que atraídos por um magnetismo, se viram as nossas atenções com frequência. É com um prazer que se renova a cada instante, como o ar que respiramos, que escuto a jovem universitária.

- Antes de Khor Virap ser construído, o lugar onde Grigor Lusavorich esteve detido chamava-se Artashat (na verdade a capital do reino, fundada no século II a.C., cujas ruínas se podem ver a dois passos do mosteiro), um buraco ocupado por cobras e escorpiões mas que, segundo ele, estavam proibidos por Deus de se aproximar.

Por instantes, o sol afasta parte do véu da abóbada.

- O rei não permitia que alguém lhe desse água ou pão. Mesmo assim, o monge, com uma fé tão grande, acreditava na sua sobrevivência.

Tatev Sinanyan, eufórica, levanta o braço e aponta com o indicador.

- Olhe agora, dá para ver um bocadinho do Ararat.

Também ela deposita um olhar mais demorado na montanha que terá servido de cenário à Arca de Noé antes de a terra ser repovoada e de se iniciar uma nova era.

A arca poisou então nas montanhas de Ararat. Era o dia dezassete do sétimo mês do ano (Génesis, 8, 4).

Essa montanha que pertencia à Grande Arménia nos tempos do reinado de Tirídates III e nos dias de hoje é turca; essa montanha e esse lugar que, como nenhum outro, tanta nostalgia transporta para os corações do povo arménio (raras são as casas que não têm uma moldura com uma fotografia do Ararat nas suas paredes).

- É a montanha sagrada para todos os arménios. Quando a observo, o meu coração enche-se de tristeza e, por dentro, todo o meu ser se agita. Os seus picos, cobertos de neve, são para mim um símbolo de pureza e todo aquele gelo é o coração da montanha, o resultado do seu tormento, do seu sofrimento.

Sinto-me grato perante tamanhas manifestações de beleza: da montanha, do vale aos seus pés e das palavras e dos sentimentos da jovem de cabelos negros.

- Eu nunca vi nada mais bonito na minha vida. Mas sempre que olho o Ararat, penso em todos aqueles que estão em cativeiro, na sua dor; e acredito que a minha montanha sagrada vive também com essa dor. 

Com um entusiasmo que contagia, retoma a história de Khor Virap.

- Diz a lenda que um dia o rei se transformou num porco e, pouco depois, a irmã do soberano teve um sonho no qual um anjo enviado por Deus lhe assegurava que apenas Grigory seria capaz de ajudar o irmão. Grigory foi levado à presença do rei e, graças às suas orações, obteve a cura para os seus males.

Regresso ao interior do mosteiro e a jovem, de 19 anos, garante-me que ainda fica por ali, até que a noite caia, com as suas memórias de visitas a Khor Virap, que terá todo o prazer em partilhar comigo, se for essa a minha vontade.

- E não quer mesmo jantar connosco? Seria uma honra para os meus pais.

Nos pisos abaixo do solo, com as suas paredes e tectos escurecidos pelo fumo, as velas ardem e a fé dos crentes alimenta-se. Pelo menos desde o século VI que são alvo de renovações, enquanto a igreja Surp Astvatsatsin, a principal estrutura do complexo religioso, data do século XVII. Imperdível, depois de escutar Tatev Sinanyan, é a descida ao poço que, embora iluminado, requer alguns cuidados — são sete metros através de uma escada de metal. 

À distância, avisto Tatev Sinanyan, sentada onde a deixara.

- Não é difícil, pois não? Eu, sempre que desço ao buraco, experimento a sensação de que não há mais terra sob os meus pés, sinto grande dificuldade em respirar e imagino a dor dos meus antepassados quando eram perseguidos devido às suas crenças.

Há uma única turista, de nacionalidade suíça, entre a multidão de arménios banhada por uma aura de felicidade que, pelo menos ao olhos de um estrangeiro, tem algo de enigmático. Khor Virap é um local onde as tristezas se esquecem e quase todos, com tantos gestos pueris, parecem devolvidos à sua adolescência, vivendo uma vida que não é a deles.

- O meu vocabulário é demasiado pobre para descrever a sensação de visitar Khor Virap. Venho aqui uma ou duas vezes por mês e sinto sempre a presença de Deus, que posso comunicar com Ele. Creio que há um poder sobrenatural que estabele uma ligação entre as pessoas e Deus. Aqui, sinto-me em paz.

Os pais de Tatev Sinanyan casaram-se em Khor Virap, ela e o irmão aqui foram baptizados; cumprindo a tradição, a jovem visitou o mosteiro no dia da sua graduação, por vezes escapava-se, juntamente com as colegas, das aulas e desfrutava de algumas horas em Khor Virap e ainda se lembra dos sábados e domingos em que assistia, de olhos muito abertos, aos movimentos delicados de um acrobata numa corda suspensa. A memória mais fresca prende-se, porém, com a visita do Papa Francisco, em Junho deste ano.

- Próximo da igreja, o Papa fez votos de paz em direcção ao Monte Ararat, como fizera Noé desde a arca. 

Ao fundo, avisto o rio Aras e, mais para lá, na terra de ninguém, trabalhadores arménios e turcos cultivam as terras, como se aquela aproximação fosse um sinal ou um exemplo que gostariam de ver imitado.

Chama da memória

A luz tímida da lua avista-se por cima dos telhados e as fontes luminosas, com os seus jactos de água que ora vão subindo, ora tombam sobre os lagos, proporcionam um espectáculo de cor que atrai um grande número de curiosos à Praça da República, em contraste com a manhã seguinte.

Chove em Ierevan, uma chuva teimosa que se desprende de um céu da cor do betão, produzindo uma orfandade naquele que é o coração da antiga Erebuni. Da praça, partem ruas e avenidas de cara lavada que acolhem centros comerciais, residências de luxo e lojas de marcas famosas que seduzem os jovens e não passam de uma miragem para aqueles que mais dificuldade sentiram para se adptarem aos novos ventos que sopraram após a independência da antiga União Soviética, em 1991.

Para melhor me identificar com os caminhos tortuosos da história do país e com as origens deste povo milenário, de uma época em que não era a república encolhida entre a Geórgia, a Turquia, o Irão e o Azerbaijão (não mais de 30 mil km2, três vezes menos do que Portugal), mas a Grande Arménia, orgulhosa do seu vasto império, das suas magnificentes igrejas e dos seus majestosos castelos, embrenho-me, a meio da manhã, pelo museu Matenadaran. O edifício, fiel ao estilo soviético, é dedicado a Mesrob Masthots, o criador, no século V, do alfabeto da língua arménia, ainda hoje em uso, e abriga, entre as suas paredes, uma das melhores colecções de manuscritos do mundo.  

Ierevan é uma cidade antiga mas sinto dificuldade, mesmo ao fim de três dias na capital, em aceitar que em 2018, em meados de Outubro, se prepara para celebrar 2800 anos de história (foi fundada em 782 a. C.) e mais ainda quando perscruto os imóveis envidraçados que rivalizam com a arquitectura soviética debruçando-se sobre ruas pedonais com as suas esplanadas cheias de jovens.

Ao início da tarde, subo à colina de Tsitsernakaberd e por ali permaneço, visitando o museu cujas fotografias retratam os massacres de 1896 e 1909, a detenção e o assassinato de líderes políticos e intelectuais e a agonia do genocídio entre 1915 e 1922 que a Turquia nunca reconheceu, ao contrário de Orhan Pamuk (e, mais recentemente, do Papa Francisco) que, em 2005, afirmou a um jornal suíço: “Um milhão de arménios e 30 mil curdos foram mortos nestas terras mas ninguém, a não ser eu, ousa admiti-lo.” Ameaçado física e juridicamente, o escritor turco, Prémio Nobel da Literatura em 2006, baseou-se no cenário de Kars, capital de um reino da Arménia no século X, para escrever o romance Neve. Kars significa neve, Kars integra, desde 1921, território turco. Até 1993, ano em que foram encerradas as fronteiras, Kars estava apenas a uma hora de carro da Arménia. Agora são necessárias mais de doze horas para deixar de ouvir o chamamento do muezzin e escutar, somente a 30 quilómetros de distância, o som produzido pelos sinos das igrejas.

Já no exterior, toco algumas das árvores (já quase nuas) plantadas por políticos internacionais que reconheceram o genocídio e, seguindo ao longo de um muro gravado com os nomes das comunidades massacradas, chego ao memorial onde arde, desde 1967, a chama eterna, também conhecida como a chama da memória, no meio de um círculo protegido por 12 placas em basalto inclinadas e que representam outras tantas províncias da Arménia ocidental perdidas para a Turquia na sequência do acordo de paz entre Ataturk e Lenine após a I Guerra Mundial.

Não haverá, no mundo, outro país tão vítima da história como a Arménia.

Vaticano da Arménia

Ainda fora do centro da cidade, que vou percorrendo lentamente, encontro outro monumento de forte simbolismo para o povo: a Mayr Hayastan, a estátua da Mãe Arménia, com mais de 20 metros de altura e de olhos postos na fronteira turca, com uma maciça espada à sua frente, numa posição defensiva.

Um rosto bonito, já com algumas rugas, oferece-me um sorriso antes de franquear a porta da igreja e os cânticos, ressoando por todo o lado, são como um apelo para seguir os passos da senhora que, com um gesto delicado, cobre a cabeça com um lenço.

Na Surp Sargis, cheia de fiéis, a atmosfera é mística. É domingo, o dia ideal para, uma vez atravessada a ponte que liga as duas margens do rio Hrazdan, apanhar uma marshrutky no terminal com destino a Echmiadzin, a escassos 20 quilómetros de Ierevan. Capital da Arménia entre 180 e 340, Echmiadzin é o Vaticano da Igreja Apostólica Arménia e o lugar onde Grigor Lusavorich teve uma visão divina que inspirou a construção da primeira igreja mãe da Arménia. 

Clérigos com longas barbas e vestidos de negro caminham pelos trilhos por entre os jardins em volta da Mayr Tachar, a catedral que é rodeada por edifícios do século XIX. A igreja original foi levantada entre 301 e 303 e — por se encontar em ruínas — reconstruída entre 480 e 483, mas todo o complexo religioso foi alvo de trabalhos de restauro e alargado ao longo dos tempos. Um monumento em pedra recorda a visita do Papa João Paulo II em 2001 e, ao lado, projecta-se o seminário Gevorgian, construído no século XIX e encerrado em 1921 — e proibido de reabrir as suas portas sob o jugo soviético — para acolher refugiados do genocídio.

Três torres sineiras, ricamente ornamentadas, destacam-se na entrada da Mayr Tachar e, uma vez no interior, à hora a que se celebra a liturgia dominical, a atmosfera produz no visitante uma sensação de paz que tarda em dissipar-se. São os cheiros, os cânticos, o fumo, a luz das velas que bailam nos rostos, tudo prende o olhar e o meu fixa-se agora numa figura que me recordo de ver, há alguns anos, em anúncios de lingerie ou em desfiles de moda — é Adriana Sklenaríková, a ex-mulher do antigo internacional francês Karembeu, eslovaca e em tempos recordista das pernas mais longas do mundo.

Respirando agora o ar puro da manhã, tento manter conversa com um veterano da guerra com o lado esquerdo do casaco coberto de medalhas soviéticas e fico depois, por longos minutos, observando apenas as famílias que prestam a sua homenagem aos mártires do genocídio, benzendo-se e rezando em frente ao monumento que lhes presta homenagem.

Do interior chegam-me ainda os cânticos mas eu desloco a minha atenção para o segundo piso da residência do pontífice de Echmiadzin, à procura das portas de aço que guardam a tábua de ónix e sobre a qual se encontram gravadas em ouro de 20 quilates as 36 letras originais do alfabeto arménio, as mesmas que, para o povo, permitem manter um diálogo com Deus e continuar a resistir como nação independente. Aos domingos, o chefe espiritual da igreja deste Estado dentro de um Estado abandona por momentos a residência e dá a sua benção aos fiéis. Aqui e acolá, alguns deles beijam o solo.

Retiros de paz

Deixo Ierevan para trás e Sevan recebe-me, uma hora depois, com uma luz mortiça que parece realçar a beleza do lago que contém 80% dos recursos hídricos do país (sem petróleo e sem gás) e está situado a quase dois mil metros acima do nível das águas do mar. Já não tenho pressa, como quando por aqui passei, acompanhado pelo melhor piloto do mundo. Agora, sou eu que defino o meu ritmo, mais pausado, com tempo para errar pelas margens do lago que é a praia dos arménios no Verão, pelo Sevanavank, o mosteiro fundado no final da primeira metade do século XIX quando Sevan era uma aldeia russa conhecida por Elenovka, pelo cemitério de Noraduz, com as suas típicas khachkars, as cruzes talhadas em pedra em forma de lápides que estão por todo o lado, e as anciãs que se sentam nos túmulos e fazem gorros de lã para os familiares e os poucos turistas que se acercam deste lugar que parece ter vida.

O ritmo não se altera em Dilijan, uns dias depois, por entre uma natureza generosa; caminho por trilhos onde nada se ouve a não ser o restolhar das folhas e o trinar dos pássaros até chegar à igreja de Surp Grigor e ao mosteiro de Jukhtakvank, ambos do século XI, pelas ruas empedradas e as casas elegantes do centro histórico da vila, também de pedra e com alpendres e varandas em madeira. Dilijan é o meu retiro, como foi, noutros tempos, sob o domínio soviético, de compositores, de realizadores de cinema e de escritores. Tenho tempo para meditar, para reflectir sobre esse paradoxo de ver o monte sagrado e não o poder tocar, como alguém que, tendo casa própria, tem de se limitar a ficar à porta.

Sim, Tatev Sananyan, prometo voltar para ficar durante horas a olhar o Ararat, como quem espera ver Noé largar uma pomba que um dia regressa à arca com um ramo de oliveira no bico.

 

GUIA PRÁTICO

Como ir

Não há voos directos entre Portugal e a Arménia mas diferentes companhias aéreas têm ligações a Ierevan, como a KLM ou a Air France. Como alternativa, mais em conta (com a Turkish Airlines), pode voar até à Geórgia e, uma vez em Tbilissi, recorrer às marshrutky, estacionadas em frente ao terminal de Ortachala, para chegar à capital arménia. 

Quando ir

Qualquer altura é boa para visitar um país conhecido pelos muitos dias de sol que proporciona ao longo do ano. Com quatro estações bem definidas, a Arménia beneficia de um clima continental, com verões secos e soalheiros, entre Junho e meados de Setembro, registando temperaturas entre os 22 e os 36 graus, dependendo do lugar onde se encontre — no vale de Ararat os termómetros atingem com facilidade os 40, da mesma forma que baixam consideravelmente durante o Inverno. As primaveras são curtas e os outonos longos, a neve cai no Inverno, ao contrário da chuva (em média os meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro estão entre os mais secos ao longo do ano, e Maio é aquele em que ocorre, por norma, maior precipitação).

Onde comer

Em Ierevan, experimente o Dolmama’s, no número 10 da Pushkin Poghots, não raras vezes ocupado pela elite política e convidados (convém efectuar reserva) e com refeições à volta dos 20 euros e uma cozinha tradicional.

Em Dilijan, numa réplica da atmosfera da vila no século XIX, tente o Haykanoush, na Sharambeyan Poghots, com pratos que incluem o borrego estufado, confeccionado com pêssegos — no Inverno substituído por frutos secos — ou souboereg, uma mistura de massa e queijo.

Na península de Sevan, sem vista para o lago homónimo mas ainda mais barato, entre os quatro e os sete euros, não passe ao lado do Ashot Yerkat, um restaurante especializado em kebabs e truta.

Onde dormir

Na Hanrapetutyan Hraparak, a Praça da República, em Ierevan, o Armenia Marriott Hotel (www.marriott.com), possibilita, pelo menos desde alguns dos quartos, uma panorâmica soberba sobre o monte Ararat, com preços a rondar os 150 euros para um duplo.

Em Dilijan, a cinco quilómetros do terminal de autocarros, pode optar pela Casa dos Compositores (30 euros por noite), que acolheu Khachaturian, Shostakovich e Prokofiev, e, em Sevan, também não faltam opções a preços razoáveis. No Inverno, alguns hotéis encerram as suas portas — aproveite para dormir num domiki, os contentores tão populares na Arménia como forma de alojamento.

A visitar

A menos de meia hora de marshrutky de Ierevan, em Garni, não desperdice a oportunidade de contemplar o templo helenístico dedicado ao Deus Mitra, construído no século I pelo rei Tirídates e, mais tarde, com a conversão ao cristianismo, transformado em residência de Verão da família real. De Garni (onde pode adquirir as famosas compotas caseiras, entre elas a vartanush, feita com pétalas de rosa), são apenas nove quilómetros até ao mosteiro Geghard (à falta de transportes públicos, pode sempre tentar uma boleia), que se encontra ao fundo de um vale e é um exemplo notável (ainda se prestam cultos pagãos) de arquitectura rupestre e Património Mundial da UNESCO.

Em Ierevan, visite o fantástico Museu Nacional e a Galeria de Arte Nacional, ambos na Praça da República; a fábrica do famoso brandy local, atravessando a ponte Haghtanak, e a Mesquita Azul, na Mesrop Mashtots Poghota e a única sobrevivente das oito que existiam na cidade no início do século passado, mas também a Surp Grigor Lusavorich, a moderna catedral mandada construir para celebrar os 1700 anos de Cristianismo na Arménia e consagrada em 2001, bem como a igreja Zoravar, próxima da Parpetsi Poghots, e a pequena Katoghike, na esquina da Sayat-Nova Poghota com a Abovyan Poghots, uma capela do século XIII descoberta quando, em 1936, os soviéticos destruíram uma igreja mais recente que se erguia no local. 

Informações

Os cidadãos portugueses apenas necessitam de apresentar o passaporte com uma validade de seis meses para entrarem
na Arménia.

A moeda é o dram arménio — 510 correspondem a um euro.

A língua oficial é o arménio, conhecida em todo o mundo como o hayeren, mas entre a população mais jovem é fácil encontrar quem fale inglês. 

Se também pretender visitar o Azerbaijão, como complemento a uma incursão pela Arménia, tenha em conta que um carimbo no passaporte desta última inviabiliza a entrada no primeiro.

--%>