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Nas margens do Vez, um “jardim botânico” (e ouro dos duendes)

Por Andreia Marques Pereira

São 10 quilómetros entre Vilela e Sistelo, o último troço da ecovia do Vez, por entre um “mundo de conhecimento”. Começamos suavemente, porém os desníveis chegam em força. Pelo meio, praias fluviais para refrescar deste mergulho profundo na natureza.

Já foi relativamente comum ver lontras no rio Vez. Se nós nem reparamos nos excrementos no caminho, Hugo Nova baixa-se e cheira. “Pensei que fossem de lontra. Mas não cheira a peixe.” Hugo Novo é biólogo de formação e agora é o proprietário da Quinta Lógica e é o nosso guia pelos chamados “Passadiços de Sistelo”, parte da Ecovia do Vez. E, então, as lontras que estão a desaparecer (ou andam cada vez mais esquivas) do Vez. “Aqui temos muito acesso à ecovia. Chegam muitos ‘autocarros de garrafão’ a Sistelo ao fim-de-semana. Vêm dezenas, centenas de pessoas por aí abaixo”, explica. “Para a ecovia é complicado. Para a classificação de Sistelo como paisagem cultural é bom”, considera. Nós estamos a fazer o percurso no sentido contrário ao das pessoas “que vêm por aí abaixo”: Sistelo é o nosso ponto de chegada, a partida é a ponte medieval de Vilela (referenciada em 1258). São 10 quilómetros, “um mundo de conhecimento”: histórico, biológico e geológico. São nove da manhã e o “querido mês de Agosto” interrompe o silêncio dos campos com altifalantes a anunciar a festa de Nossa Senhora da Luz, na vizinha Sabadim.

A manhã está nublada quando pomos pés ao caminho pelo que já foram trilhos de transumância para o gado que vinha da Galiza passar o Verão em Viana do Castelo. E viram passar o exército de Afonso VII de Leão a caminho do Torneio de Arcos de Valdevez (1140), decisivo para o reconhecimento da independência de Portugal. Estamos em território de amial, como quase toda a ecovia que abriu há dois anos com 32,7 quilómetros divididos em três troços. Estamos no último (o de maior desnível, 462 metros), começamos bem junto ao rio, mas o trajecto há-de afastar-nos um pouco dele. Por agora avançamos por trilho de terra entre muitos amieiros, sim, mas também salgueiros, camomila, freixo, aveleiras (“daqui a um mês já se podem comer avelãs”), pereira-brava (provamos, é adstringente), gilbardeiras. Plátanos também se intrometem entre nós o rio Vez – o exótico, de jardim, e o pseudo-plátano, endémico da serra da Peneda –, juntamente com loureiro (arbustos mas também árvore), madressilva, castanheiros, dentes de leão, malva, fiteiras, cerejeiras, sabugueiros e até pequenas latadas se insinuam. “É um autêntico jardim botânico, a ecovia”, elogia Hugo Novo. Entretanto, o rio corre para além deste “jardim”, sendo nesta etapa comum verem-se no seu leito ínsuas durante o Verão (no Inverno o rio vai muito mais cheio), às vezes tão grandes que parecem margens e o rio apenas um ribeiro.

Ainda não encontramos muitos passadiços quando chegamos à Zona Fluvial de Lazer de Sá. A paisagem é de postal, com o rio a fingir-se lago antes de descer uma pequena represa e passar entre uma ponte de poldras. Deparamo-nos com um dos muitos moinhos que ainda se encontram pelas margens, quase todos ruínas que a vegetação camufla – este está restaurado, mas fechado. “A história do rio liga-se ao milho”, explica Hugo, “que descia até Viana e daí seguia para Inglaterra. As grandes fortunas destas terras no século XIX estavam ligadas a estes moinhos.”

Andamos por zonas planas (até passam algumas bicicletas) e parece acessível o percurso, sempre com o borbulhar do rio, por vezes mais nervoso, e o som das cigarras como companhia. Uma plantação de bétulas albas surge do lado de dentro, onde os terrenos são privados e uma rede os separa dos trilhos que eram, mesmo antes da ecovia, utilizados por pescadores (a truta é a “vítima”). É nesta tranquilidade que nos deparamos com o Observatório de Louredo – o nome é sofisticado mas não há muita informação: aqui, o rio Ramiscal junta-se ao Vez e forma uma zona de grande beleza. Há muitos recantos assim, neste troço dos passadiços, até chegarmos ao Poço das Caldeiras: este é espaço “oficial” de mergulhos (do alto de rochedos) e pode aceder-se de carro.

É aqui que emergimos do vale (escadaria íngreme que não é fácil para quem, como nós, não está habituado a caminhadas), subimos acima do “jardim”. Entramos numa espécie de “parênteses” neste trilho, afastados do rio e pelo alcatrão. É quase um quilómetro assim.

Novamente a sinalização da Ecovia do Vez para iniciarmos a zona com “mais natureza” (diríamos natureza mais indomada). A partir daqui o trilho é mais acidentado, com subidas e descidas íngremes, por vezes com bastantes pedras; a partir daqui o recurso a passadiços intensifica-se, sobretudo à medida que vamos subindo e aproximando-nos de Sistelo: grandes troços suspensos, sobem, descem e fazem curvas entre floresta que do lado do rio se “agarra” em declives abruptos e do lado de dentro se empoleira entre afloramentos rochosos, por vezes com pequenas cascatas. Os sinais do glaciar do Vez reconhecem-se nos “cortes” que formam paredes de pedras e terra, como que negativos do que foi a subida e a descida do nível do rio (neste processo, explica Hugo, surgiram os socalcos que também fazem a fama de Sistelo, que o homem melhorou e amplificou), e no leito do rio com a “substituição” dos seixos por rochas cada vez maiores.

Avançamos entre carvalhos-alvarinho, borboletas brancas e um silêncio apenas entrecortado pelo rio a saltar (o Vez é rio de caiaque). As “aradeiras” (o nome dado por aqui às heras) cobrem troncos de árvores, aparecem pilriteiros – não vemos nenhuma cobra-de-escada mas são comuns, começam a aparecer orégãos selvagens e vemos a urze que dá cortiça. A Poça da Padela abre-se no rio e estamos em terreno plano, floresta (cheia de musgos; em Setembro surgem os cogumelos). Começamos a ver mais terrenos agrícolas (feno), já casas empoleiradas nas vertentes – espreitamos o ouro dos duendes (um musgo que vive em grutas e espaços escuros que é fluorescente), quase reduzido a zero – mas quando chegamos à Poça dos Aflitos, praia fluvial, já é novamente floresta por todo o lado, embora estejamos perto da Capela dos Aflitos. É hora do piquenique: fumeiro assado, broa de milho amarelo, mel, vinho branco, água, fruta da época – o folar brandeiro ficou de fora, vieram os charutos de Arcos de Valdevez adoçar-nos a boca.

Esta zona é aproveitada por muitos caminhantes para iniciarem o percurso ou apenas visitantes ocasionais, uma vez que os carros podem chegar perto. Nós, entretanto, começamos a cruzar-nos com vários grupos, famílias, sobretudo, e é assim que chegamos a Sistelo. E se não repetimos os dez quilómetros para voltar ao carro é porque viemos com a Quinta Lógica (12€ por pessoa para grupos entre oito e 16 pessoas) – além da interpretação e do piquenique, há boleia até ao ponto de partida.

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