Já foi relativamente comum ver lontras no rio Vez. Se nós nem reparamos nos excrementos no caminho, Hugo Nova baixa-se e cheira. “Pensei que fossem de lontra. Mas não cheira a peixe.” Hugo Novo é biólogo de formação e agora é o proprietário da Quinta Lógica e é o nosso guia pelos chamados “Passadiços de Sistelo”, parte da Ecovia do Vez. E, então, as lontras que estão a desaparecer (ou andam cada vez mais esquivas) do Vez. “Aqui temos muito acesso à ecovia. Chegam muitos ‘autocarros de garrafão’ a Sistelo ao fim-de-semana. Vêm dezenas, centenas de pessoas por aí abaixo”, explica. “Para a ecovia é complicado. Para a classificação de Sistelo como paisagem cultural é bom”, considera. Nós estamos a fazer o percurso no sentido contrário ao das pessoas “que vêm por aí abaixo”: Sistelo é o nosso ponto de chegada, a partida é a ponte medieval de Vilela (referenciada em 1258). São 10 quilómetros, “um mundo de conhecimento”: histórico, biológico e geológico. São nove da manhã e o “querido mês de Agosto” interrompe o silêncio dos campos com altifalantes a anunciar a festa de Nossa Senhora da Luz, na vizinha Sabadim.
A manhã está nublada quando pomos pés ao caminho pelo que já foram trilhos de transumância para o gado que vinha da Galiza passar o Verão em Viana do Castelo. E viram passar o exército de Afonso VII de Leão a caminho do Torneio de Arcos de Valdevez (1140), decisivo para o reconhecimento da independência de Portugal. Estamos em território de amial, como quase toda a ecovia que abriu há dois anos com 32,7 quilómetros divididos em três troços. Estamos no último (o de maior desnível, 462 metros), começamos bem junto ao rio, mas o trajecto há-de afastar-nos um pouco dele. Por agora avançamos por trilho de terra entre muitos amieiros, sim, mas também salgueiros, camomila, freixo, aveleiras (“daqui a um mês já se podem comer avelãs”), pereira-brava (provamos, é adstringente), gilbardeiras. Plátanos também se intrometem entre nós o rio Vez – o exótico, de jardim, e o pseudo-plátano, endémico da serra da Peneda –, juntamente com loureiro (arbustos mas também árvore), madressilva, castanheiros, dentes de leão, malva, fiteiras, cerejeiras, sabugueiros e até pequenas latadas se insinuam. “É um autêntico jardim botânico, a ecovia”, elogia Hugo Novo. Entretanto, o rio corre para além deste “jardim”, sendo nesta etapa comum verem-se no seu leito ínsuas durante o Verão (no Inverno o rio vai muito mais cheio), às vezes tão grandes que parecem margens e o rio apenas um ribeiro.
Ainda não encontramos muitos passadiços quando chegamos à Zona Fluvial de Lazer de Sá. A paisagem é de postal, com o rio a fingir-se lago antes de descer uma pequena represa e passar entre uma ponte de poldras. Deparamo-nos com um dos muitos moinhos que ainda se encontram pelas margens, quase todos ruínas que a vegetação camufla – este está restaurado, mas fechado. “A história do rio liga-se ao milho”, explica Hugo, “que descia até Viana e daí seguia para Inglaterra. As grandes fortunas destas terras no século XIX estavam ligadas a estes moinhos.”
Andamos por zonas planas (até passam algumas bicicletas) e parece acessível o percurso, sempre com o borbulhar do rio, por vezes mais nervoso, e o som das cigarras como companhia. Uma plantação de bétulas albas surge do lado de dentro, onde os terrenos são privados e uma rede os separa dos trilhos que eram, mesmo antes da ecovia, utilizados por pescadores (a truta é a “vítima”). É nesta tranquilidade que nos deparamos com o Observatório de Louredo – o nome é sofisticado mas não há muita informação: aqui, o rio Ramiscal junta-se ao Vez e forma uma zona de grande beleza. Há muitos recantos assim, neste troço dos passadiços, até chegarmos ao Poço das Caldeiras: este é espaço “oficial” de mergulhos (do alto de rochedos) e pode aceder-se de carro.
É aqui que emergimos do vale (escadaria íngreme que não é fácil para quem, como nós, não está habituado a caminhadas), subimos acima do “jardim”. Entramos numa espécie de “parênteses” neste trilho, afastados do rio e pelo alcatrão. É quase um quilómetro assim.
Novamente a sinalização da Ecovia do Vez para iniciarmos a zona com “mais natureza” (diríamos natureza mais indomada). A partir daqui o trilho é mais acidentado, com subidas e descidas íngremes, por vezes com bastantes pedras; a partir daqui o recurso a passadiços intensifica-se, sobretudo à medida que vamos subindo e aproximando-nos de Sistelo: grandes troços suspensos, sobem, descem e fazem curvas entre floresta que do lado do rio se “agarra” em declives abruptos e do lado de dentro se empoleira entre afloramentos rochosos, por vezes com pequenas cascatas. Os sinais do glaciar do Vez reconhecem-se nos “cortes” que formam paredes de pedras e terra, como que negativos do que foi a subida e a descida do nível do rio (neste processo, explica Hugo, surgiram os socalcos que também fazem a fama de Sistelo, que o homem melhorou e amplificou), e no leito do rio com a “substituição” dos seixos por rochas cada vez maiores.
Avançamos entre carvalhos-alvarinho, borboletas brancas e um silêncio apenas entrecortado pelo rio a saltar (o Vez é rio de caiaque). As “aradeiras” (o nome dado por aqui às heras) cobrem troncos de árvores, aparecem pilriteiros – não vemos nenhuma cobra-de-escada mas são comuns, começam a aparecer orégãos selvagens e vemos a urze que dá cortiça. A Poça da Padela abre-se no rio e estamos em terreno plano, floresta (cheia de musgos; em Setembro surgem os cogumelos). Começamos a ver mais terrenos agrícolas (feno), já casas empoleiradas nas vertentes – espreitamos o ouro dos duendes (um musgo que vive em grutas e espaços escuros que é fluorescente), quase reduzido a zero – mas quando chegamos à Poça dos Aflitos, praia fluvial, já é novamente floresta por todo o lado, embora estejamos perto da Capela dos Aflitos. É hora do piquenique: fumeiro assado, broa de milho amarelo, mel, vinho branco, água, fruta da época – o folar brandeiro ficou de fora, vieram os charutos de Arcos de Valdevez adoçar-nos a boca.
Esta zona é aproveitada por muitos caminhantes para iniciarem o percurso ou apenas visitantes ocasionais, uma vez que os carros podem chegar perto. Nós, entretanto, começamos a cruzar-nos com vários grupos, famílias, sobretudo, e é assim que chegamos a Sistelo. E se não repetimos os dez quilómetros para voltar ao carro é porque viemos com a Quinta Lógica (12€ por pessoa para grupos entre oito e 16 pessoas) – além da interpretação e do piquenique, há boleia até ao ponto de partida.