Fugas - Vinhos

Barca Velha

Por Rui Falcão

Os mitos, os verdadeiros mitos, aqueles que conseguiram criar, estabilizar e fortalecer uma imagem de marca irrepreensível e de fácil lembrança, aqueles que perduram e que conseguiram elevar-se ao estatuto de lenda, são uma raridade. Afinal, o que é obrigatório para ser considerado um mito?

A resposta sai pronta e conta-se em poucas palavras. Possuir uma história ímpar, preferencialmente épica, dispor de detalhes e histórias deliciosas que acrescem humor e heroísmo, incluir personalidades fortes que sustentem uma história apaixonante, manter um percurso imaculado de prestígio e qualidade. Mas também manter uma aura de exclusividade, manter uma pequena dose de extravagância, bem como uma saudável simbiose e harmonia entre conservadorismo e inovação.

 O sujeito desta crónica, o famoso, mítico e mais que lendário Barca Velha consuma estes pré-requisitos na perfeição, dispondo de um passado que o eleva facilmente à condição de estrela maior do firmamento. Falamos, pois, de um vinho que se transformou num mito.

Dele já quase tudo foi dito e redito, a começar pela história homérica da sua criação e pela personalidade vincada do seu autor e criador original, Fernando Nicolau de Almeida. Os detalhes são deliciosos. Sabe-se que num Douro que à época ainda não contava com o luxo e esplendor da electricidade, o arrefecimento dos mostos em fermentação era garantido por blocos de gelo vindos do Porto, envoltos em palha e transportados no dorso de burros pelas veredas e caminhos tortuosos do Douro em viagens alucinantes, desgastantes pelo tempo, custo e esforço envolvido.

As infinitas e morosas experiências com diferentes castas estão igualmente bem documentadas, ensaiando o comportamento de cada variedade a diferentes altitudes, solos e exposições, numa procura constante para desvendar os melhores equilíbrios entre açúcar e acidez que permitisse a Fernando Nicolau de Almeida criar o vinho de guarda que idealizara. De Fernando Nicolau de Almeida conhece-se igualmente o perfil austero, que por vezes se transformava numa estranha folia, o rigor científico e a justeza de carácter. Mas, mais do que o lado pessoal, conhece-se o resultado da sua obra, consubstanciada em vinhos precisos e rigorosos, vinhos prazenteiros mas austeros, vinhos sérios e com uma inesperada capacidade de guarda.

O nome do vinho que entretanto se transformou numa lenda, Barca Velha, conta a história de uma vinha sita na Quinta do Vale Meão, berço original do Barca Velha, quinta que à época ainda fazia parte do universo Ferreira, local onde aportava uma velha barca que, à falta de ponte, era usada pela população local para cruzar o rio. Desde o poiso original na Quinta do Vale Meão, o Barca Velha mudou de casa e hoje nasce na Quinta da Leda, também no Douro Superior, propriedade e quinta emblemática da Sogrape.

O primeiro Barca Velha saiu em 1952, mas infelizmente poucos se poderão gabar de alguma vez o ter provado. Seguiram-se apenas 17 declarações em 61 anos de vida, condição suficiente para lhe assegurar a condição de escassez e raridade que é indispensável aos grandes mitos. Até hoje só tiveram direito a usar a designação Barca Velha as colheitas de 1952, 1953, 1954, 1957, 1964, 1965, 1966, 1978, 1981, 1982, 1983, 1985, 1991, 1995, 1999, 2000 e o muito recente 2004. Basta um olhar rápido para a curta lista de declarações do Barca Velha, mesmo que distraído, para notar que o intervalo entre declarações chegou a atingir os doze anos, testemunho inequívoco do rigor com que a equipa de enologia segue a elaboração deste mito nacional.

Uma equipa que no decorrer destes já longos 61 anos de existência conheceu unicamente três enólogos, três condutores que assumiram esse enorme privilégio de poder tomar conta dos destinos do Barca Velha. O primeiro foi o grande compositor e ideólogo do Barca Velha, Fernando Nicolau de Almeida, o homem que idealizou e desenhou um vinho a partir do nada. José Maria Soares Franco tomou as redes do Barca Velha logo de seguida, garantindo a sucessão de forma séria e tranquila, acrescentando uma dose de urbanidade menos habitual no passado. E finalmente o autor contemporâneo do grande tinto duriense, Luis Sottomayor, renovador de veludo do perfil Barca Velha, apresentando vinhos capazes de manter a austeridade mas acrescentando um perfil mais sereno e moderno.

E claro, o mito não estaria completo sem a intemporalidade e lendária capacidade de guarda do Barca Velha. A sua longevidade excepcional é mais uma vez sinal evidente de um carácter pouco habitual nos vinhos portugueses. A comparação é fácil e para tal basta colocar o Barca Velha face aos seus pares do mesmo ano… exercício que mostra invariavelmente a concentração e profundidade deste mito do Douro.

A verdade é que o perfil Barca Velha mudou substancialmente desde a colheita 1999, uma mudança positiva e que renovou e ajudou a recuperar o prestígio do passado. Podemos afirmar, mesmo que com alguma afoiteza, que a colheita de 1999 foi o primeiro Barca Velha da era moderna, o primeiro Barca Velha contemporâneo que permitiu rivalizar e emparceirar com os seus pares mais recentes do Douro… e igualmente mediáticos. Um estilo que o Barca Velha 2000 confirmou e que o mais recente Barca Velha 2004 reiterou de forma categórica.

O perfil delicado, a austeridade e aristocracia do passado mantêm-se mas agora acrescidos de fruta e de uma jovialidade contagiante, uma frescura aromática que acrescenta alegria e pujança. E pujança é mesmo a inovação de perfil mais dramática no Barca Velha, mostrando um estilo mais desempoeirado, moderno, no melhor sentido que a adjectivação possa encerrar, sem nunca perder de vista os conceitos de equilíbrio e harmonia tão queridos dos criadores do Barca Velha.

Sejamos claros, os Barca Velha de 1999, 2000 e 2004 são vinhos absolutamente notáveis. E tão portugueses na sua expressão. 

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