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O vinho português anda à procura de um perfil mais elegante

Por Manuel Carvalho

Sem grandes alardes, começa a desenhar-se uma vaga de fundo no vinho português que aponta para a criação de perfis menos pesados, mais frescos e com arestas. O mercado ditará a sorte desta mudança.

O leitor inclui-se no grupo de apreciadores de vinhos com elevado teor de álcool, com aromas expressivos de fruta madura e um toque evidente de madeira? Daqueles vinhos que se bebem jovens e impressionam os sentidos pela sua intensidade e exuberância no nariz e na boca? Pois então prepare-se: não é por aí que estão a evoluir os padrões do gosto mundial para os vinhos de topo nem é esse o perfil que uma parte significativa dos enólogos e empresas portuguesas vão defender no futuro próximo, principalmente nas gamas médias e altas.

Para seu conforto, há sempre a constatação de que no vinho “o factor moda é terrível” e como “os enólogos vão fazendo vinhos ao sabor das modas”, como nota o jornalista e crítico de vinhos João Paulo Martins, o que é hoje verdade é amanhã mentira. Depois, como nota o enólogo Luís Soares Duarte, “fala-se mais da mudança do que se faz na realidade. Mas se faz questão de alinhar a sua enofilia com o estado actual da arte, ou da moda, então já sabe: as palavras de ordem dos próximos anos serão, cada vez mais, “frescura”, “elegância”, “acidez” e “carácter”.

Convém, desde logo, situar à partida o âmbito de uma discussão que, de facto, interessa muito mais aos que cultivam o vinho e as suas tecnicalidades do que o consumidor comum que compra uma garrafa, ou uma bag in box, com a mesma simplicidade com que adquire uma caixa de cereais num supermercado. Por isso, sempre que se fala de mudança de perfil dos vinhos A ou B, da região X ou Y, estamos a referir-nos aos vinhos das gamas médias e superiores.

A este propósito, o enólogo Domingos Soares Franco não tem dúvidas quanto ao seu pragmatismo. “Sou daqueles que aceita o que o mercado quer, principalmente nos vinhos de combate, que são os que nos pagam o ordenado. Mas os super-premium, esses não mudo. Continuo a fazer o que mais me interessa. São vinhos de autor”, explica o responsável pelos vinhos da José Maria da Fonseca.

Está por se saber se os clientes indiferenciados, que compram um vinho a dois euros ou por vezes menos, se preocupam com a erudição das discussões sobre a maturação, os taninos rugosos ou a falta deles. Talvez não. Para esses, a resposta do vinho português é já bastante satisfatória. “Há uma tendência de nos aproximarmos do gosto dominante do mercado, que procura cada vez mais vinhos elegantes, mas a grande transformação é a consistência qualitativa do vinho português. Hoje já “não é um risco comprar vinho português”, considera Jorge Monteiro, presidente da Viniportugal, a entidade responsável pela promoção externa do sector.

Muitas empresas continuarão por isso a fazer o que fazem, com as antenas dirigidas para o mercado, “que ainda revela preferência por vinhos com extracção e volume de álcool”, na avaliação de Luís Soares Duarte, numa lógica de concorrência directa com vinhos sul-africanos ou chilenos, muito mais focadas em factores como a normalização do que no perfil. Mas, para lá do mass market, há mais vida para o sector nacional do vinho. E é principalmente aí que se pressente o início de um processo de mudança de estilos.

“Nos últimos dois ou três anos nota-se uma mudança no sector, principalmente no Douro. Deixaram de se fazer tantos vinhos com álcool a mais, procuram-se vinhos mais elegantes, que obrigam a fazer vindimas mais cedo para colher uvas com menos expressão da fruta mas com mais acidez. Estamos a deixar o estilo Robert Parker”, diz João Paulo Martins.

Em causa está mais uma etapa de um processo de evolução iniciado há uns 40 anos. Que resulta mais de uma leitura das tendências internacionais do que propriamente de uma reflexão própria sobre as potencialidades da vinha e do vinho portugueses. “Hoje as pessoas viajam muito”, diz Jorge Monteiro. “Sempre que estou no estrangeiro aproveito para provar todos os vinhos que puder”, acrescenta Domingos Soares Franco.

Por vezes, o caminho parece claro; outras, nem tanto. “O volume de álcool já subiu, já desceu e está outra vez a subir no mercado escandinavo”, comprova o enólogo da José Maria da Fonseca. “Os vinhos com maiores pontuações têm todos acima de 14% de álcool”, nota Luís Soares Duarte.

Se o Douro aparece, na avaliação do jornalista João Paulo Martins, como uma espécie de vanguarda do que, tarde ou cedo, acontecerá no perfil dos vinhos das outras regiões, há resistências que não apontam para uma mudança simultânea. Pelo contrário. “No Dão as pessoas tentam imitar o Douro do passado, procurando vinhos com mais álcool e madeira”, diz João Paulo Martins. De resto, uma mudança de perfil de uma marca, de uma empresa e, mais difícil ainda, de uma região, exige tempo e adaptação. Das vinhas e das castas, por exemplo.

Charles Symington, enólogo do grupo familiar e co-autor do Chryseia 2011 que a revista norte-americana Wine Spectator colocou no número dois do top 100 dos vinhos do ano, nota: “Nós temos vindo a aprender” e a aprendizagem levou a “uma predominância das duas tourigas (Nacional e Franca) nos vinhos topo de gama. São duas castas que combinam muito bem, são complementares, têm sinergias”.

Domingos Soares Franco considera que essa aposta na vinha é o vector principal de qualquer transformação e nota que há imenso a fazer no campo. Castas, como a Aragonez, que outrora prometiam, caem agora em desgraça: “Estou extremamente decepcionado com as vinhas novas de Aragonez. A casta, em monovarietais, tem bom aroma e boa boca, mas cai a meio da prova”. Outras, estranhas ou suspeitas, ganham respeito, como a Viognier, que está a dar “felicidade” ao enólogo, ou, caso da Trincadeira, suscitam esperança: “Estou a começar a acreditar”, continua Domingos Soares Franco.

É afinal a precisão da viticultura e acertos na enologia que levarão ao vinho “ideal”. João Nicolau de Almeida, enólogo da casa Ramos-Pinto, há muito que sabe quais são os seus principais atributos: “Os bons vinhos têm de ter corpo e frescura. Não é só serem redondinhos. Têm de ter final de boca. Têm de ser apetecíveis”.

O contrário do que muitos produtores nacionais fizeram em anos recentes. O oposto do conceito do “vinho-espectáculo”, que “tinha tudo em altas quantidades mas bebiam-se dois copos e pedia-se algo mais suave e fresco”. Saber se essa frescura é possível sem a rusticidade dos vinhos de outros tempos é tema que continua a suscitar leituras divergentes. Charles Syimington considera que “uma das coisas mais importantes para nós foi dominar a parte tânica, conseguindo fazer vinhos com dimensão e volume de boca sem serem agressivos. Sempre partimos do princípio que devíamos fazer vinhos assim”.

Anselmo Mendes, um dos mais conceituados enólogos do país, lamenta que em Portugal “está a ficar tudo muito redondo”. Explica: “Um destes dias um americano lembrava-me que em Portugal quando falamos de vinho só falamos de fruta e de vinhos redondos. Ora os nossos vinhos sempre tiveram uma aresta”. Onde procurá-la? Nos taninos mais rugosos, na acidez?

Cada enólogo de cada região terá a sua resposta, mas o simples facto de as perguntas sobre o que deve suceder a uma geração de vinhos mais ou menos homogeneizados em torno da doçura das frutas, da madeira e do álcool elevado é por si só uma reacção que suscita simpatia: “Sabemos o que se quer e isso é o mais importante”, diz Anselmo Mendes. “Estamos a mudar a agulha e, na minha opinião, para um melhor sentido”, complementa João Paulo Martins.

Há, ainda assim, um risco nestas mudanças. O de os vinhos portugueses passarem de um padrão internacional para outro padrão internacional. Jorge Monteiro, que se tem batido pelo carácter único dos vinhos nacionais, admite-o, mas relativiza o problema ao considerar que “há uma diferenciação à partida, que são as castas portuguesas. As mudanças em curso não põem em causa a nossa identidade”, afirma. Uma visão lógica para quem vê o país do exterior, mas, à partida mais complicada quando se analisam as diversidades do vinho português dentro de fronteiras.

João Paulo Martins alerta a propósito para os perigos causados pelas enormes plantações de Touriga Nacional, principalmente, mas também de Alvarinho e, moda mais recente, de Touriga Franca por todo o país. “Arriscamos a fazer vinhos iguais de Norte a Sul”, alerta. “Há o risco de haver uma perda de identidade das regiões portuguesas. Tenho medo que isso aconteça. O Dão, por exemplo, quer fazer vinhos como o Douro. O caminho não é esse”, nota Anselmo Mendes (ler mais sobre esta polémica nas páginas 28 a 30).

Com todos os desafios e todas as ansiedades próprias de um sector que, há 40 anos, “só produzia granel para as colónias”, como recorda Anselmo Mendes, o vinho português vai-se consolidando nos mercados externos. “Nos últimos três anos houve um crescimento acentuado e continuado nos Estados Unidos”, congratula-se Jorge Monteiro.

“Estamos a chegar à crista da montanha de um país que não é apenas o maior importador em valor do mundo, mas também uma montra mundial. É lá que estão revistas cuja pontuação influencia todo o mundo”, nota o presidente da Viniportugal. O terreno conquistado, porém, torna o desafio das próximas etapas muito mais exigente. Deixar de concorrer com a gama média do Chile, por exemplo, e entrar na disputa com as grandes regiões de Itália ou da França é outra.

Apesar de todos os prémios conquistados, “falta finesse aos vinhos portugueses, principalmente aos tintos”, diz Anselmo Mendes. “Os vinhos franceses, por exemplo, têm classe à mesa”, acrescenta. Por outro lado, “falta definição para o carácter de cada região, ao contrário do que acontece em França”, o país-referência quando se fala da alta cultura do vinho.

Com ou maior trabalho com madeira, com o volume de álcool (João Nicolau de Almeida não vê aqui um problema à partida) ou com a selecção de castas, uma obra muito longe de estar consolidada, o maior problema do vinho português está talvez nesta interrogação: saber o que ele é, de facto. Qual é a sua identidade. Independentemente das modas do mercado, à margem do indispensável equilíbrio entre a produção de quantidade para padrões de gosto normalizados e a satisfação das altas elites do consumo mundial, vai passar ainda algum tempo até sabermos ao certo o que é um Douro, um Dão ou um Bairrada – exceptuando os inconfundíveis Baga.

A meio caminho dessa procura, há, no entanto, uma evolução que muitos apreciadores exigentes aplaudem: deixando de apostar no excesso de maturação, na madeira, na fruta intensa e marcante e em estilos de vinho que permitem o consumo imediato, os enólogos portugueses ficam limitados nos artifícios e tenderão a deixar uma maior margem de expressão para as condições naturais das diferentes regiões.

O caminho é ainda incerto, ambíguo, e por vezes mais testemunho de uma vontade do que de uma acção concreta, como nota Luís Soares Duarte. Como é óbvio, haverá resistência em prolongar a guarda dos vinhos por mais tempo nas adegas, haverá riscos e medo de mudar. Mas o simples facto de haver uma vanguarda que já se mostrou disposta a apostar nesta mudança é sinal que, daqui a uns anos, o vinho português poderá ser marcado por uma outra face.

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