Fugas - Vinhos

Enric Vives-Rubio

Lisboa também tem vinhos

Por Rui Falcão

Uma homenagem a Bucelas, Carcavelos e Colares.

Não, esta crónica não se vai pronunciar sobre os vinhos da região de Lisboa, essa região abençoada que engloba as denominações de origem de Alenquer, Arruda, Encostas d’Aire (Alcobaça e Medieval de Ourém), Lourinhã, Óbidos e Torres Vedras, mas sim sobre os vinhos da cidade de Lisboa, vinhos que nascem nas três denominações de origem quase contíguas à capital, as três denominações históricas de Bucelas, Carcavelos e Colares.

Quantas capitais europeias gozam desse privilégio tão distinto de ter vinhos com o seu nome e nas suas imediações? Viena é seguramente uma delas, com vinhas, adegas e produtores ainda dentro dos limites geográficos do concelho da capital austríaca. E Lisboa é a outra capital europeia que possui a magia de conseguir associar o seu nome ao mundo do vinho, com três denominações de origem a enquadrar-se no espírito e geografia da capital.

Três denominações históricas, três regiões emblemáticas da paisagem e história de Portugal, três locais que contam com glórias passadas e, infelizmente, alguns problemas actuais que poderão condicionar o futuro. Situando-se geograficamente próximas à cidade de Lisboa, as três denominações compõem um anel verde envolvente à cidade que recria um saudável perfume rural às portas de Lisboa com um património histórico e natural que reclama atenção e preservação.

A sorte e infortúnio das três denominações são distintos entre si. Carcavelos, a mais pequena e uma das mais pequenas da Europa, continua encurralada sob a pressão urbanística de Oeiras resistindo como pode, com o precioso e indispensável amparo da Câmara Municipal de Oeiras e o apoio indiscutível e igualmente precioso da Estação Agronómica Nacional. A subsistência da denominação terá mesmo de ser assegurada por estes organismos públicos, já que as entidades privadas parecem continuar alheadas da denominação, o que a coloca num cruel estado de precariedade face à sua história tão rica e tão própria.

As outras duas denominações são quase opostas entre si. Se Bucelas histórica e racionalmente sempre se amparou nos vinhos brancos, já Colares, talvez não tão racionalmente, sempre assentou praça nos vinhos tintos. Curiosa e estranhamente, as duas denominações partilham a mesma particularidade, o facto de ajustarem a sua produção e individualidade numa só casta, respectivamente o Arinto e o Ramisco.

O Arinto atinge o seu apogeu indiscutível em Bucelas, local onde a casta alcança o seu zénite absoluto e onde encontra condições ideais para encantar com a sua magia. Já o Ramisco sobrevive quase exclusivamente em Colares, mantendo-se como uma raridade da região, uma casta exclusiva, difícil e muito especial que não é propagada nem cultivada em nenhum outro lugar de Portugal. Em comum, as duas regiões beneficiam e sofrem com a vizinhança a Lisboa. A magia do nome de uma cidade conhecida, a proximidade à capital, é igualmente o maior pesadelo para estas três pequeníssimas denominações.

Bucelas vai conseguindo resistir à invasão do betão com algum conforto, apesar da intensa pressão urbanística. Continua a ser a área mais rural do concelho de Loures, num conforto campestre que, apesar de situado às portas da cidade, permite que a paz ainda impere. O relevo é acidentado, o que significa múltiplas exposições, a humidade é relativamente elevada e as horas de sol abundam. Bucelas é terra de brancos, terra de Arinto, terra capaz de proporcionar vinhos frescos e muito minerais, perfumados e intensos, com uma invejável capacidade de envelhecimento em garrafa.

O declínio já foi o fado desta região, decadência que nos últimos anos tem vindo a ser contrariada com o entusiasmo de alguns pequenos projectos. A recente recuperação de popularidade dos vinhos brancos poderá ajudar na regeneração de Bucelas, coração de toda uma plateia de apreciadores de vinhos brancos com carácter. Infelizmente, e tal como num passado recente, uma quantidade significativa de vinha continua a ser dedicada à produção de vinho para consumo próprio, para vinhos de mesa não certificados naquilo que é um aparente paradoxo numa zona com tamanho potencial.

Colares é um mundo sem paralelo onde tudo é diferente e misterioso. Dir-se-ia que Colares faz tudo ainda às avessas, de forma ilógica e aparentemente absurda. As melhores parcelas de vinha estão plantadas em chão de areia, solos de areia pura e dura. O fundo argiloso encontra-se a grande profundidade, transformando a operação de erguer uma vinha num esforço quase inumano. Sim, é verdade que a denominação também conta com vinhas em solos argilo-calcários, o chamado chão rijo, mas esses vinhos são muito menos interessantes.

Os ventos são vigorosos e incessantes, num rodopio que derruba qualquer planta mais aventureira. Para garantir a sobrevivência das plantas, as vinhas são mantidas coladas ao chão de areia, espalhadas em áreas valiosas, protegidas por paliçadas de cana. Para que os bagos não sejam escaldados pela ardência da areia, cada pequeno cacho tem de ser elevado com a ajuda de curtas canas biseladas que terão de suportar cada cacho individual. A humidade do Atlântico é terrível e o nevoeiro uma constante, o que transforma a maturação numa incógnita permanente. Num clima que à partida se afigura mais propício para vinhos brancos, a aposta sempre recai maioritariamente nos vinhos tintos.

E, pior, Colares sofre do encanto de uma paisagem paradisíaca, da proximidade de Lisboa e da presença da praia, dos encantos da serra e do romantismo colado a Sintra. É presa fácil da urbanização, dos condomínios e das casas de férias que competem com o espaço dedicado às vinhas. A boa notícia é que começam agora a surgir novos projectos na região, novas aventuras que poderão indiciar uma tão necessitada renovação de sangue na região. Há quanto tempo não prova um vinho de uma destas três denominações da cidade de Lisboa?

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