Uma sobranceria que continua a querer simplificar os países produtores não europeus a um conjunto confortável de chavões que, apesar de confortáveis para o ego europeu, escondem de forma grosseira a realidade de países líderes como a África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Argentina, Chile ou Estados Unidos da América.
Continuamos a olhar para o nosso umbigo europeu de forma demasiado apaixonada, desaproveitando os bons exemplos que aportam de outros continentes, enterrando a cabeça na areia como se o mundo não pudesse evoluir ou como se os padrões do passado se mantivessem sem evolução.
Apesar de a Europa continuar a produzir vinhos excitantes e motivadores, a verdade é que deixámos há muito de ser o centro do mundo, de ser a causa e o efeito que todos quereriam seguir. O peso científico, económico e cultural dos países do novo mundo, na vinha como no vinho, é cada dia mais relevante, condição visível no número de vinhos excepcionais que nascem em alguns destes países.
A transformação do universo do vinho foi tão marcante e extraordinária que o mercado norte-americano transformou-se no maior mercado mundial, ao mesmo tempo que a crítica norte-americana se consagrou como a mais influente do mundo.
Os produtores norte-americanos foram ganhando prestígio internacional, em parte beneficiados pelo poder da nova crítica, em parte aproveitando a embalagem do já famoso “julgamento de Paris”. Mas foi a Califórnia que sempre se destacou como a região produtora de vinho por excelência, assumindo as rédeas da produção vitícola. Hoje já não será novidade para a maioria dos enófilos esclarecidos que a Califórnia é identificada como uma das maiores e mais afamadas regiões produtoras de vinho do mundo, capaz de se bater em reconhecimento, preço e mediatismo com a maioria das regiões francesas mais afamadas.
Ao longo de décadas, a Califórnia foi-se transformando numa das grandes potências do vinho e hoje tem de ser encarada como tal. Hoje pode até orgulhar-se de um percurso e património histórico com que algumas regiões europeias apenas podem sonhar, com nomes tão prestigiados como Inglenook, que conta com um pouco mais de 150 anos de percurso histórico ininterrupto. Ou Beaulieu, produtor californiano que produz vinho há pouco mais de 110 anos. Quantos produtores portugueses, se descontarmos o caso particular dos vinhos do Porto, Madeira ou Moscatel, se podem orgulhar de produzir vinho há mais de cem anos de forma consistente e sem pausa?
Quando falamos dos vinhos californianos costumamos pensar de imediato na escola francesa, com destaque natural para a região que desde cedo fascinou os produtores californianos, Bordéus. As grandes estrelas da Califórnia são o Cabernet Sauvignon, sinónimo natural e espontâneo de vinho tinto para a maioria dos consumidores norte-americanos, e Merlot, embora esta última vagueie ao sabor das modas e das circunstâncias da época, ora ganhando atenção e popularidade, ora sendo rejeitada e atropelada pelos ventos da contramaré. Nos vinhos brancos, as castas bordalesas têm sido esquecidas, com exclusão dos revivalismos intermitentes mas efémeros da casta Sauvignon Blanc, frequentemente apelidada como “Fumé Blanc”, embora as atenções recaiam invariavelmente sobre o Chardonnay.
Mas a casta mais emblemática da Califórnia é o Zinfandel, verdadeira identidade californiana que foi elevada a símbolo nacional. A sua origem manteve-se misteriosa durante muitas décadas, como é obrigatório em quase todas as boas histórias, embora hoje saibamos que a variedade tem origem croata, teoria que alguns insistem em contrariar, garantindo-lhe uma génese italiana.
De origem italiana ou croata, o que é certo é que enquanto europeia a variedade permaneceu relativamente obscura e pouco popular, mesmo nos países de origem. Na Califórnia o Zinfandel foi elevado à condição de tesouro nacional por muitos dos produtores e adoptada como tal pelo público norte-americano. Tal condição poderia ser explicada pela enorme plasticidade da casta, capaz de se transformar em vinhos brancos ou levemente rosados sem qualquer ponta de alma ou apresentar-se como a rainha do carácter em vinhos tintos intensos e poderosos, escuros e profundos, avassaladores na dimensão e entrega.
A seu favor, sobretudo quando plantada nas regiões de Sonoma e Santa Cruz Mountains, onde a maturação é mais favorável e a idade média das vinhas mais elevada, oferece vinhos cheios e redondos, frequentemente generosos no álcool e ligeiramente adocicados, frutados, ricos, espessos e explosivos, muito ao gosto do paladar local, que com regularidade privilegia os sabores fortes e pronunciados. Incrivelmente, a casta é igualmente conhecida por proporcionar vinhos em registos diametralmente opostos que privilegiam vinhos ligeiros e quase sem cor. Com frequência a casta é vinificada como branco, adquirindo uma tonalidade pálida que é conhecida como blush wine em vinhos extremamente simples, aguados, artificiais e enjoativos. É verdadeiramente extraordinário que a mesma casta consiga adquirir tantas tonalidades e expressar-se de formas tão antagónicas, seja pelos excessos de protagonismo, seja pela ausência de qualquer carácter. Um sinal inequívoco de uma variedade pouco habitual.