Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

O outro Douro

Por Pedro Garcias

O Douro é triste, um quase espelho do mundo, dividido entre uns quantos ricos e uma legião de pobres.

Na vindima, o verdadeiro Douro ressuma com a mesma força do vinho a ferver nos lagares e nos tonéis. Surge como uma ferida aberta de que uns fogem por repulsa e outros ignoram, convencidos que a região é mesmo aquela que aparece nos cartazes publicitários: um rio imenso ziguezagueando por entre montanhas cobertas de vinhas, quintas com nomes históricos nos lugares mais panorâmicos do vale, barcos deslizando sobre as águas calmas das albufeiras, miradouros sem fim à vista.

Este Douro idílico, que nem precisava de ser tão bonito para nos deixar assombrados, existe mesmo. É uma das mais belas regiões vinhateiras do mundo. Mas, por debaixo do que se vê, vive um outro Douro, habitado por gente que passou a vida inteira a ganhar a geira, que chega ao fim do mês a contar os tostões, que esquece a tristeza nas tabernas e gasta o pouco que ganha em raspadinhas. Um Douro que, num passado recente, começou por falar ucraniano, romeno e búlgaro e que qualquer dia volta só a falar português, porque, depois de os ucranianos perceberem que estavam na terra errada, incompreendidos e explorados, até os romenos e os búlgaros já começam a fugir ou a regressar a casa, porque sempre é melhor ser pobre em casa do que miserável e maltratado na terra dos outros. Vale a pena ir para o Douro ganhar 28 euros por dia, que é quanto as empresas agrícolas pagam às mulheres (e 30 aos homens), em muitos casos com meses de atraso?

O Douro é mesmo triste. Na terra do vinho do Porto, dos grandes grupos, das grandes quintas, dos vinhos que as revistas da especialidade colocam nos píncaros, das famílias ricas ou com algumas posses que vivem no Porto ou em Lisboa e só vêm à vindima matar saudades e colher o “benefício” (autorização para produzir vinho do Porto), nessa pequena extensão da Foz e de Cascais, o grosso da população rural vive pobre e habitualmente. Basta um dia na vindima para se conhecer esse outro Douro, pobre e tacanho, para ver a miséria de comida que trazem de casa para o almoço, para ouvir as suas conversas de queixume mas também de cusquice e má língua permanentes, para constatar a eterna subserviência perante o patrão e agora até a crescente xenofobia perante os estrangeiros que vão substituindo as rogas de antigamente — gente ainda mais pobre.

Nos últimos 30 anos, o Douro mudou muito. À fama secular do vinho do Porto somou-se a erupção dos vinhos tranquilos, cobertos de prémios e distinções sucessivas, e o boom do turismo. Mas o eterno paradoxo duriense continua imutável. O grosso da riqueza do Douro está concentrado em apenas uns poucos e é para estes que uma boa parte dos restantes trabalha. No Douro, quase todas as famílias têm uns pés de vinha, mas mesmo aqueles que produzem algumas pipas de vinho, mesmo que seja para Porto, pouco ganham. As uvas continuam a ser pagas aos preços de há 20 anos e, desde então, os custos de produção, já de si altos, pelo perfil montanhoso da região, mais do que duplicaram. O que se passa no sector do vinho do Porto, que, apesar de estar em queda, continua a ser o abono de família dos durienses,  é sintomático. Já quase não há empresas familiares, foram absorvidas pelos cinco grupos dominantes; e a concentração vai continuar, porque só há lugar para as grandes companhias e para aqueles que trabalham para elas,  como os ajuntadores de uvas e os intermediários “barrigas de aluguer” que fazem vinho do Porto para lhes vender logo em Dezembro. As empresas médias não têm forma de competir no preço e os pequenos viticultores ainda menos, para além de estarem amarrados às absurdas exigências legais que a Alfândega e o IVDP colocam a quem quer produzir vinhos fortificados.

No Douro, o número de viticultores diminui de ano para ano. No final de 2016 já só eram 21.432 e destes, na sua maioria velhos e reformados, apenas umas escassas centenas conseguem viver dignamente da vinha. Claro que já não há gente descalça e faminta a vaguear pelas ruas e a trabalhar pela côdea e a sopa. Foi gente dessa que ajudou a erguer muitas quintas do Douro. Quando D. Antónia, “A Ferreirinha”, construiu a sua última quinta, Vale Meão, chegou a empregar cerca de 1000 pessoas, a maioria, de certeza, só a troco de comida. Era assim, naquele tempo. Hoje, não é de miséria que estamos a falar, é de pobreza. O que choca no Douro actual, perante a riqueza da região, é haver ainda tanta gente pobre e iletrada. O que choca é o Douro não ser como a Borgonha, Bordéus ou Champanhe, onde se pode ter uma vida boa sendo viticultor, onde a terra tem valor e as novas gerações querem ficar. Infelizmente, o Douro das grandes quintas e dos grandes vinhos continua a ser uma terra de emigrantes — e isso diz tudo.

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