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Há comidas que pedem vinho; neste caso, é o vinho que pede comida, mais comida, para podermos prolongar o prazer de bebê-lo. Não é exagero. Melhor é experimentá-lo do que julgá-lo, como diria Luís de Camões. Para nós, que já o bebemos, o Reserva Especial 2003, o 14.º desde que a marca foi lançada, em 1962, é um vinho extraordinário. O seu volume alcoólico, 14,5%, está um pouco acima das edições anteriores, reflectindo as altas temperaturas do Verão de 2003. Mas ninguém diria, tal é a sua frescura.
O Reserva Especial e o Barca Velha, o topo de gama da Casa Ferreirinha e da Sogrape, fazem o mesmo percurso até chegar a hora de decidir qual a designação que vão ter. São feitos com as mesmas uvas, provenientes de vinhas do Douro Superior de diferentes altitudes, e o vinho estagia um ano e meio em barricas de carvalho e vários mais em garrafa. Os lotes que sugerem ter maior capacidade de envelhecimento vão para Barca Velha. A grande dificuldade é essa: antecipar a evolução do vinho.
Nem sempre se acerta.
Correndo o risco das comparações, o Reserva Especial 2003 é um vinho que, na densidade e estrutura, se assemelha muito ao 1997, um dos melhores de sempre e que só não foi declarado Barca Velha porque a Sogrape, na dúvida, decidiu "sacrificá-lo", para ajudar a relançar a designação "Reserva Especial", que tinha sido proibida.
O seguinte, o Reserva Especial 2001, revelou-se um vinho mais fino e delicado mas igualmente complexo, fresco e sedutor.
Em boa verdade, o 2003 tem um pouco do 1997 e do 2001. É volumoso e "quente" (na fruta vermelha madura e nas notas apimentadas) e também muito balsâmico. Inebria no aroma e fascina na prova de boca, onde as sensações especiadas, a fruta, os taninos e a acidez brilham a grande altura. O final parece interminável e glutão, pedindo novo gole.
No contra-rótulo da garrafa diz-se que este vinho requer "uma ocasião singular" e recomenda-se que a garrafa seja colocada de pé no dia anterior e aberta duas a três horas antes de ser decantada e servida.
Parece ser cerimonial a mais nesta fase do vinho e, no nosso caso, resolvemos queimar etapas.
Também não esperamos por uma ocasião singular: o pretexto foi um estufado de frango caseiro, daqueles durinhos, bem temperado com especiarias de galinha, caril e sementes de pimenta hot. Os aromas e sabores quentes da comida casaram admiravelmente com a complexidade de aromas e sabores do vinho. As proteínas da carne ligaram-se aos taninos, as especiarias bailaram juntas e o balsâmico e a acidez final do vinho exaltaram tudo.
Duas horas depois do almoço, regressámos ao vinho, sem comida. Não era outro, embora, com o álcool volatilizado, a sua componente vegetal (espargos, sobretudo) e acidez fossem mais evidentes. Mas já nada era capaz de apagar a memória da refeição. O vinho é para se beber com comida e, sem termos ido a nenhum restaurante três estrelas Michelin, o Reserva Especial 2003 tinhanos deixado nas nuvens com um simples frango caseiro. Os grandes vinhos são assim: só requerem uma boa companhia.
Pedro Garcias
Reserva Especial Casa Ferreirinha 2003