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Silêncio, nestas cidades fala-se de música

Por Sousa Ribeiro

Dakar, Havana, Buenos Aires, Bogotá, Nova Orleães e Viena – a música como denominador comum. Uma viagem pelos seus ritmos, pela sua história musical, do tango ao jazz, da música clássica à batida forte da capital senegalesa, do son de Cuba à cumbia colombiana.

«A música pode mudar o mundo porque pode mudar as pessoas» – Bono Vox

Na próxima quinta-feira, 1 de Outubro, comemora-se o Dia Mundial da Música, um pretexto para uma viagem por seis cidades onde se vibra com a música. De Dakar a Buenos Aires, de Bogotá a Nova Orleães, de Havana a Viena. São estas como podiam ser outras, urbes que, com os seus ritmos, os seus estilos, não deixam ninguém indiferente. Nelas fala-se de música, escuta-se música a toda a hora, respira-se música.

DAKAR

Boul ma sene, boul ma guiss, madi re nga
fokni mane
Khamouma li neka thi sama souf ak thi
guinaw
Beugouma kouma khol oaldine yaw li neka si
yaw
Mo ne si man, li ne si man moye dilene diapale

Logo depois, com a mesma força, a voz de Neneh Cherry impõe-se, enquanto Youssou N’Dour cerra os grossos lábios, a cortina de uns dentes imaculadamente brancos.

And when a child is born into this world
It has no concept
Of the tone the skin is living in

E, a seguir, uma explosão, duas vozes unidas pela mesma causa.

It’s not a second
7 seconds away
Just as long as I stay
I’ll be waiting

Youssou N’Dour é a figura incontornável da música senegalesa e das maiores referências do panorama musical africano. Vi-o actuar, ao vivo, no Coliseu dos Recreios, uma noite, já lá vão tantos anos que nem os consigo contar. Ninguém resistia, mexendo as pernas, os braços ou a cabeça – ou todos em simultâneo –, ao ritmo frenético e contagiante imposto por uma presença que transpirava energia e com um rosto emoldurado por um sorriso que mais parecia de criança, eternamente feliz. Presenciei, tantos anos depois – e tão poucos que ainda os consigo contar – como Youssou N’Dour permanece, ainda hoje, num cantinho tão especial no coração dos senegaleses e das gentes de Dakar.

Aquele que os senegaleses tratam carinhosamente como You começou a cantar na mítica Star Band quando havia completado há pouco tempo 12 anos e, ao atingir a idade adulta, a sua maturidade musical conduziu-o naturalmente à liderança da Étoile de Dakar, outra banda popular que rivalizava com a Diamono, de onde viriam a sair, em etapas diferentes da sua existência, Omar Pene e Ismaël Lô.

Youssou N’Dour nasceu e cresceu no bairro de Medina e faz no próximo dia 1 de Outubro 55 anos. Por essa altura, em meados do século XX, Dakar começava a impregnar-se das influências musicais provenientes de outros quadrantes e, não satisfeita e plena de criatividade, não perdia muito tempo a transformar essa batidas num ritmo próprio e personalizado.

Se a história não nos mente, ela tem o seu lado belo e, ao mesmo tempo, dramático: os galeões, saídos da Ilha de Gorée durante os séculos da escravidão, sulcavam as águas do mar e, seguindo a mesma rota, cruzavam-se com outras embarcações que, vindas de muito longe, do mar do Caribe e das Antilhas, carregavam mercadorias para os portos das cidades da África Ocidental e do Golfo da Guiné colonizadas por franceses e britânicos. E entre esses bens, algures nos porões, vinham uns discos afro-cubanos que rapidamente ganharam popularidade nesse período do qual todos nos devíamos envergonhar. Aqueles que tinham rádio – ou cujo vizinho tinha um – não tardaram a familiarizar-se com os programas que difundiam as rumbas e outros sons que tanta inquietude lhes provocava num corpo já com propensão para se agitar.

Vivíamos no tempo das cassetes, as réplicas locais, lançadas no mercado pela GV, uma subsidiária da EMI, davam a conhecer nomes como a já referida Star Band, a Orchestra Baobab, a Canari de Kaolack, a Royal Band de Thiès, um período baptizado como Belle Époque, na ressaca da descolonização francesa. Nos dias que correm, alguns senegaleses entre a população menos jovem, adquirem uma expressão nostálgica quando evocam lugares enterrados no passado, cenários míticos onde a música ganhava maior expressão, como o Miami Club, do líder da Star Band, Ibra Kassé, ou o Baobab Club. Afortunadamente, errando pelas ruas de Dakar e pelos seus subúrbios, a alma que gosta de música sente-se preenchida no magnificente Théâtre Daniel-Sorano, na Boulevard de la République, ou em clubes como o Tamango e o Thiossane, na área do Point E, o Keur Samba, na rue Jules Ferry, ou o Kilimanjaro, na aldeia artesanal.

Em Dakar, a música é como os táxis: uma e outros estão sempre presentes, ao virar uma esquina ou ao desfazer uma curva; nunca faltam e nunca são de mais; transportam o viandante para outros destinos e outras emoções, tantas vezes viajando juntos – os táxis, com os seus ocupantes apenas movendo os lábios à falta de espaço para mexerem os corpos, o viandante e a música.

Depois de assumir as pastas da Cultura e do Turismo, Youssou N’Dour é agora conselheiro para a presidência, promovendo o país internacionalmente. Não lhe sobra tempo para a música mas a febre do mbalax, tão divulgada pelo cantor em estádios cheios, continua bem viva nas ruas de Dakar.

Cai a noite, todos os caminhos conduzem ao Just 4 U, na Avenida Cheikh Anta Diop, o melhor espaço para música ao vivo na capital. Ao longe, ouvem-se outros sons, outras batidas, toda a cidade parece estar a ouvir a esta hora. E a todas as horas.

HAVANA

- Como bailas bien!

A pequena, com os seus bonitos caracóis, lança-me um sorriso e logo volta a concentrar-se no som, dançando numa sincronia admirável para quem ainda não completou cinco anos. Um descapotável dos anos 1960 rasga o alcatrão do Malecón; a bordo seguem três músicos e um contrabaixo que aponta para o céu pintado de azul; sentado no muro, um casal de namorados, acompanhado de uma pequena aparelhagem, ameaça conduzir um beijo até à eternidade.  

Se, a Dakar, chegavam discos, em Cuba desembarcavam milhões de escravos vindos de África pela mão dos espanhóis, de forma a rentabilizar ao máximo as plantações de cana-de-açúcar. Socialmente, ninguém terá dificuldade em qualificar a atitude dos colonizadores ou em perceber os seus contornos dramáticos; musicalmente, fácil será entender como a presença dos africanos tornou mais rica, em géneros e em ritmos, a música da ilha que já em tempos remotos acolhia compositores da escola europeia, como Miguel Velázquez (século XVI) e Esteban de Salas y Castro (século XVIII), este último uma figura proeminente do Barroco tardio.

A música cubana floresceu e ultrapassou fronteiras no século XX mas já no século XVI se dava início a todo um processo criativo que abarcava o son, clave, habanera, rumba, danzón e guajira. Da música popular e de baile, tão impregnadas na alma e na identidade do povo, nasceram outros ritmos, entre eles o mambo, tocado pela primeira vez pela famosa orquestra Arcaño, bem como o cha-cha-cha, criado por Enrique Jorrín em meados do século passado e com clara influência do son cubano.  

De Leo Brouwer, compositor cubano nascido em Havana, já quase todos ouvimos falar desde a segunda metade do século XX, mas outros nomes passaram a ser escutados a nível internacional em anos mais recentes, como Pablo Milanés, Noel Incola e Silvio Rodríguez, o trio de cantautores da nova trova, os Irakere e Los Van Van, uma banda fundada em finais da década de 1960 por Juan Fornell e a quem se credita a autoria do songo, um género musical com raízes no tradicional son.

Aprendimos a quererte
Desde la histórica altura
Donde el sol de tu bravura
Le puso un cerco a la muerte.

Aquí se queda la clara,
La entrañable transparencia,
De tu querida presencia
Comandante Che Guevara

Foi Wim Wenders quem prestou, nos últimos anos, o maior contributo para a internacionalização e vitalidade da música cubana, com a chegada às salas de cinema de Buena Vista Social Club, dando a conhecer ao mundo a banda homónima, formada por um grupo de anciãos intimamente ligado ao son, um mosaico de vozes, de percussão, de guitarras, uma multiplicidade de ritmos e um reportório que tanto faz sonhar e meditar, com as suas canções de amor e as suas baladas que falam da vida e do sentido desta, como agitar os corpos ao som de uma salsa irresistível para os cubanos. 

Compay Segundo, nome artístico de Francisco Repilado, falecido em 2003 com 95 anos, tornou-se o sonero mais célebre do país, um símbolo nacional que aliava a paixão pela música ao humor e à alegria de viver. «Nunca renunciei a nada, a mulheres, a cigarros e a diversão. Mas sem me exceder», admitiu, há uns anos, numa entrevista, quando lhe perguntaram qual era o segredo para a sua vitalidade.

Embora desaparecido, tal como Celia Cruz, Compay Segundo e a sua música são como muitos dos beijos que se trocam no Malecón ao fim da tarde, quando o sol começa a banhar de tons dourados alguns dos mais belos edifícios de Havana – eternos. O son sente-se órfão de uma lenda mas o son continua a escutar-se um pouco por todo o lado na capital em tempo de mudança política histórica. Às quintas e sextas, a Casa de la Cultura, na Avenida Salvador Allende, 720, acolhe algumas das melhores bandas desse estilo musical e quem preferir ouvir ou dançar ao som da salsa – uma agradável mistura de ritmos cubanos, como o son, o mambo e a rumba, com outros porto-riquenhos, como o jibaro e a plena, ou colombianos (cumbia) e dominicanos (merengue) –, também não terá dificuldade em encontrar espaços em Havana, entre eles o Salón Rosado Beny Moré, na Avenida 41, esquina com a 46, ou a Casa de la Música, no bairro de Miramar, na calle 20, esquina com a 35.  

Com origem na parte oriental da ilha e uma existência de mais de um século, o folk urbano tocado por músicos fiéis a Santiago de Cuba e que resultou na trova (nos anos 1970 transforma-se na nova trova muito por culpa de Sílvio Rodríguez e Pablo Milanés) também se pode ouvir em Havana, na Casa de la Trova de Centro Habana, na calle San Lázaro, entre a calle Padre Varela e Gervasio, ou, caso visite Santiago, na Casa de la Trova, na calle Heredia, no centro da cidade – a urbe é também famosa pelo Festival del Caribe, no início de Julho, reunindo orquestras e intérpretes famosos do son e da trova.

Outro lugar imperdível em Havana, para melhor se identificar com a variedade de músicas e danças cubanas, é o mítico Tropicana, na calle 72, entre as calles 41 e 45, em Marianao, uma sala de festas com as suas portas abertas desde 1931 e uma verdadeira instituição de Havana que trilha os caminhos dos bailes cubanos e das divindades da santería, um pequeno-grande mundo em que virtuosismo e excesso dão as mãos e convivem em perfeita harmonia.

Como no Malécon, onde o som da música abafa, por esta hora, o marulho das águas.

- Tio, quieres bailar comigo?

É a minha vez de sorrir para a pequena.

BUENOS AIRES
Nacho Narbone é como eu: mesmo sozinho, tem dificuldade em acertar o passo: não há delicadeza, não há elegância nos movimentos, apenas uma ofensa à música e à dança, confidencia-me, quase como se de um segredo se tratasse. 

- A minha avó, Juana Ramonda, sim, dançava o tango como poucas. Agora não, já tem 89 anos.

No metro, com mais de cem anos, um pequeno sino define o rumo e o sentimento – não há muitas cidades no mundo que abracem o viandante com tanta nostalgia.

Mi Buenos Aires querido
Quando yo te vuelva a ver,
No habrá más penas ni olvido

Sob uma luz mortiça, escuto Carlos Gardel, o francês mais argentino de todos, a quem o tango, com o seu ritmo tão cadenciado, quase tudo deve. Há dúvidas sobre o lugar onde nasceu mas o cantor, compositor e actor tinha pelo menos uma certeza.

Volto a escutar:

Mi Buenos Aires, tierra florida
Donde mi vida terminaré

Buenos Aires é uma cidade bicéfala, aberta às contradições do dia-a-dia, silenciosa aqui, ruidosa acolá, ora cheia de magia, ora repleta de pragmatismo, ora amarga, ora doce. Mas é Buenos Aires, um íman que não para de atrair viajantes, muitos deles movidos por essa ânsia de ver dançar o tango porque, mais do que uma cidade com palácios e catedrais, monumental, a capital argentina é uma urbe que se conhece na rua, com os seus cheiros, os seus encantos, a sua dupla face encaixando-se na trilogia que constitui a sua catarse popular: o futebol, o choro, o tango.

Um pouco como Lisboa, com a diferença do fado, também triste, também nostálgico.

É domingo, caminho pela calle Defensa, neste dia da semana conferindo exclusividade aos peões; mais para diante, acabarei por encontrar, mais tarde, a Plaza de Mayo, o coração da vida política e social da Argentina; detenho-me na Defensa, como que hipnotizado com o verdadeiro sentir porteño, escutando o tango cujas palavras quase se desfazem em lágrimas e interpretado pela Fernández Fierro, uma orquestra plantada na rua que atrai todos os olhares dos transeuntes.

Parto para San Telmo, essa reminiscência da Buenos Aires que se começava a erguer no século XVIII, bairro colonial de ruas estreitas, com a sua Plaza Dorrego atraindo tudo e todos, uma manifestação cultural espontânea, um formigueiro humano andando para cá e para lá, parando para admirar uma estátua viva, parando para escutar o tango, recolhendo-se num dos muitos bares de esquina, com as suas paredes desmaiadas, mais os seus cartazes que tanto prestam homenagem aos pugilistas célebres como a Carlos Gardel.

Bajo tu amparo no hay desengano
Vuelan los años, se olvida el dolor

Sigo para La Boca, fitando as cores das suas casas, chapas de zinco pintadas, tão características da arquitectura, um bairro que, como Buenos Aires, oferece duas faces, por um lado a poesia, por outro, a partir de determinadas zonas, um mundo em efervescência, pouco ou mesmo nada vocacionado para turistas inocentes, de câmara fotográfica na mão ou ao peito; outra vez, duas caras, as cores garridas em contraste com a vida cinzenta que muitos parecem levar. Evita, Maradona, Gardel, em papel machê, saúdam-me das varandas. El Caminito espera-me, com o seu ritmo próprio do final de tarde: tambores rufando, esperando o tilintar de moedas no bolso do turista curioso, um casal dança o tango com uma elegância que me faz desviar o olhar com vergonha da minha falta de destreza, os turistas aplaudem, sorriem, agitam outra vez os bolsos à procura de mais uns trocos.

A noite tomba, outra noite cairá sobre Buenos Aires, e mais outra, dando tempo para que procure a herança parisiense absorvida no século XIX, com os seus bares e cafés revelando-se como centros sociais por excelência, melhores exemplos para apreender, com detalhe, a idiossincrasia porteña – no La Perla, na entrada da calle Caminito, no bairro La Boca, no El Balcón, na plaza Dorrego, em San Telmo, em Palermo, em redor da plaza Cortázar, em cafés como Malas Artes, El Taller ou La Galera, com música ao vivo.

E, uma vez mais, o tango, também em Palermo, no La Viruta, na calle Armenia.

Mi Buenos Aires querido
Quando yo te vuelva a ver,
No habrá más penas ni olvido

BOGOTÁ
Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, foi editado, pela primeira vez, em Buenos Aires. O escritor viveu, durante um período da sua existência, na capital colombiana, na verdade o palco onde se tornou um grande repórter.

- Como és bonita, mi ciudad!

Gosto de fitar a cidade desde as alturas, desde Monserrate, o seu monte sagrado, e as palavras da jovem morena, também ela plantando o olhar sonhador na planície pela qual se estende a metrópole, conduzem o meu pensamento até aos dias em que o grande escritor calcorreou as suas ruas inquietas à procura de notícias e reportagens.

“No México, enquanto escrevia Cem Anos de Solidão – entre 1965 e 1966 – só tive dois discos que se gastaram de tanto serem ouvidos: os Prelúdios de Debussy e A hard day’s night dos Beatles. Mais tarde, quando por fim tive em Barcelona quase tantos como sempre quis, pareceu-me demasiado convencional a classificação alfabética e adoptei para minha comodidade privada a ordem por instrumentos: o violoncelo, que é o meu favorito, de Vivaldi a Brahms; o violino, desde Corelli até Schönberg; o cravo e o piano, de Bach a Bartók. Até descobrir o milagre de que tudo o que soa é música, incluídos os pratos e os talheres no lava-loiça, sempre que criem a ilusão de nos indicar por onde vai a vida.”

Assim escreve Gabo, grande apreciador de música e habitual frequentador de bailes durante uma grande parte da sua vida, em Viver para contá-la, a autobiografia editada em Portugal pela D. Quixote.

Do alto, escutando os murmúrios que se soltam da igreja, avisto a cidade e deixo-me assaltar pelas memórias da véspera, do ambiente festivo e boémio que caracteriza a noite de Bogotá, centrado nesse lugar onde se deve ir pelo menos uma vez na vida, com o sugestivo nome de Andrés Carne de Res. É um restaurante, uma discoteca, um bar, um lugar para bailar, está localizado nos subúrbios da cidade, em Chia, e abraçado pelos cheiros da natureza; olha-se para o espaço e pensa-se, de imediato, num cabaret, com os seus múltiplos letreiros que espalham o néon pelas ruas, um lado profano que logo é atenuado pela presença de objectos que me fazem sentir que estou na Colômbia, as imagens de virgens ao lado de outros ícones aos quais estão habituados a prestar culto – a prova de que o povo, sempre disponível para a festa, nunca renuncia ao fervor com que encara a religião.

Rumbas, mais rumbas, as mesas são afastadas, o local transforma-se, num abrir e fechar de olhos, numa pista de dança, a noite prolonga-se, estende-se até aos primeiros alvores do dia, já ninguém mais se recorda, a esta hora, da Virgem de Montserrat, de deixar uma mensagem nas suas paredes, como testemunho de uma visita que todos, com maior ou menor devoção, acabam por fazer.

Na Colômbia, e mais em Bogotá, agora que o país já não escuta as ondas de um mar agitado, há um tempo para (quase) tudo: um para a diversão, outro para a devoção.

Todos aqueles que procuram não se afastar muito da capital, podem sempre permanecer em algum dos muitos bares de La Candelaria, embrenhando-se na cultura cervejeira tão associada ao bairro da cidade, enquanto escutam uma cumbia ou uma outra tendência mais moderna, porque de tudo se encontra, desde há uns anos a esta parte, numa cidade com apetência para deixar o espírito do viajante desassossegado.

Não, Bogotá renasce: sendo uma cidade onde é necessário estar atento, como tantas outras no mundo, com pouco espaço para a ingenuidade do turista, principalmente quando a noite se começa a insinuar, é uma cidade tranquila, onde a música galga fronteiras, vibrante e com uma energia contagiante.

Bogotá integra, desde 2012, a rede das cidades criativas, um projecto da UNESCO (Idanha-a-Nova é candidata) criado para promover a diversidade cultural e a cooperação internacional entre cidades em áreas como a música (no caso da capital colombiana), a literatura, cinema, artesanato e arte popular, design, artes e media e gastronomia. Nesse sentido, desde 1995 que Bogotá organiza o Festivales Al Parque, um programa que inclui concertos grátis ao ar-livre de rock, jazz, salsa, hip hop e de música clássica, acolhendo mais de meio milhão de espectadores todos os anos – uma medida inteligente das entidades locais para atrair os cidadãos aos espaços públicos e para reforçar a identidade e diversidade cultural de Bogotá.

Ao mesmo tempo, a urbe colombiana acolhe outros 60 festivais de música e cerca de 500 concertos por ano, o que faz dela um importante centro regional em estilos tão distintos como salsa e opera, electrónica e ranchera, bolero e gospel e música tradicional do país.

Já nos últimos dois anos, o município desenvolveu um projecto para incluir a música e as artes nos programas básicos de educação – e, actualmente, são mais de 20 mil as crianças abrangidas por esta iniciativa nas escolas públicas.

NOVA ORLEÃES
Qualquer cidadão, em Nova Orleães, sente orgulho por poder afirmar que, enquanto no resto do país, em finais do século XIX, as marchas militares eram a nota dominante, nesta cidade eternamente desperta dançava-se os ritmos do Voodoo. Mas esse não é o único motivo de orgulho: Nova Orleães, ao contrário de todas as outras urbes do Novo Mundo, sempre permitiu que os escravos se fizessem acompanhar dos seus instrumentos de percussão e tolerava os rituais do voodoo, presenciados por brancos e negros, pobres e ricos, figuras proeminentes ou simples anónimos.

A música africana, juntamente com a música escutada nas igrejas e em bares, deu origem a novos sons; de repente todos dançavam na rua, festejando a vida, festejando o nascimento da música, ninguém tocava, em todo o país, como se tocava em Nova Orleães, uma cidade multicultural – e ainda hoje poucos são os que resistem a participar num desfile ou em qualquer evento musical porque celebrar faz parte da identidade dos locais.

Nova Orleães é o berço do jazz mas a data do nascimento permanece incerta. Há quem aponte o ano de 1895, quando Buddy Bolden formou a sua primeira banda; há quem recue menos no tempo, até 1917, quando Nick LaRocca e a sua Original Dixieland Jazz Band editaram o primeiro disco de jazz, Livery Stable Blues; há quem chegue a 1847, recordando que os primeiros ritmos africanos misturados com música europeia foram escutados em La Bamboula-Danse Negre, da autoria de Louis Moreau Gottschalk, filho de um médico judeu que deixou a Inglaterra para se instalar em Nova Orleães; finalmente, há quem defenda que o “nascimento” se deve creditar a Papa Jack Laine e à sua banda, Reliance Brass Band, alegando que este irlandês era o homem que terá dado as primeiras lições musicais a brancos, negros e crioulos.

Mais fácil é obter consenso quanto ao mais famoso de todos, Louis Armstrong, que escreveu na sua autobiografia: “A primeira grande orquestra de jazz foi formada em Nova Orleães por um trompetista chamado Dominic James LaRocca. Chamavam-lhe Nick LaRocca.”

Fosse quem fosse, Nova Orleães é a cidade do jazz mas também uma cidade que acolhe todo o tipo de música e de manifestações culturais.

O New Orleans Jazz & Heritage Festival, entre finais de Abril e início de Maio, é um dos mais concorridos festivais mas Nova Orleães organiza eventos quase todos os fins de semana ao longo do ano. Entre Março e Maio, por exemplo, acontece o Wednesday at the Square, com tardes de música, comida e diversão na Praça Lafayette; também em Março, o Buku Festival, com actuações ao vivo em quatro diferentes palcos (e distintos estilos musicais); ainda no mesmo mês, tem lugar o vibrante Congo Square New Worlds Rhythm Festival, um regresso ao passado através da música e da dança com forte inspiração nos escravos, no início do século XIX; já em Abril, mais dois festivais, o Freret Street e o French Quarter e não muito longe deste último, no Louis Armstrong Park, todas as tarde, às quintas-feiras, entre meados de Abril e meados de Junho, são organizados concertos ao ar-livre, com entrada livre.

Nova Orleães não descansa, fervilha de vida. Nem todos os festivais são dedicados à música mas a música está quase sempre presente. Em Junho, ocorre o Cajun Zydeco Festival, também no French Quarter; em Julho, o Essence Festival e o Satchmo SummerFest; em Agosto, o Whitney White Linen Night.

Se visitar a cidade até ao final do ano, ainda vai a tempo de assistir, entre 9 e 11 de Outubro, ao Carnival Latino, ao Crescent City Blues & BBQ Festival, entre 16 e 18, ao Words and Music Festival, de 29 de Outubro a 2 de Novembro, e ao Voodoo Music Experience, entre 30 de Outubro e 1 de Novembro.

VIENA
O ritual repete-se a cada ano que passa: pouco depois das 11h00 horas, no primeiro dia de Janeiro, a Orquestra Filarmónica de Viena brinda os austríacos com o tradicional concerto de Ano Novo. A essa hora, não apenas na capital mas um pouco por todo o país (e em outros 90, como aconteceu este ano), milhões de pessoas ligam os seus aparelhos televisivos para assistir ao espectáculo que tem como palco, desde 1939, o salão dourado do Musikverein, na praça homónima.

A música não se concentra apenas neste espaço inaugurado a 6 de Janeiro de 1870 num terreno cedido pelo imperador Francisco José – a música está em todo o lado, respira-se em Viena e em outras cidades.

A Áustria é o país da música.

Se as novas tendências são acolhidas em discotecas como o Flex (Augartenbrücke), considerada a melhor dos países de língua alemã em 2003, ou a Grelle Forelle (Spittelauer Lände, 12), com os seus dois pisos (apenas permite entrada a maiores de 21 anos), a música clássica pode ouvir-se em múltiplos espaços com extensos programas de concertos ao longo do ano.

Entre eles, o Wiener Konzerthaus, na Lothringerstrasse, 20, com um repertório musical desde a Idade Média até aos nossos dias, o Theater na der Wien, na Linke Wienzeile, 6, projectado por Emanuel Schikaneder, um colaborador de Mozart, inaugurado em 1801, destruído durante a II Guerra Mundial e renovado em 2006 (a reinauguração foi marcada por um concerto dirigido por Plácido Domingo); na Fleischmarkt, 24, encontrará a Wiener Kammeroper, fundada pelo director de orquestra, Hans Gabor, e na Währinger Strasse, 78, a Wiener Volksoper, inaugurada em 1898 com a designação Kaiser-Jubiläums-Stadttheater, uma sala onde, até 1903, apenas se representavam obras teatrais mas que agora inclui óperas e musicais, bem como espectáculos de dança contemporânea, concertos e operetas.

Viena tem mais, a Staatoper, a Ópera do Estado, um teatro de estilo neo-romântico inaugurado em 1869 com a ópera Don Giovanni de Mozart e que até 1920 se conhecia como a Ópera da Corte. Destruída pelos bombardeamentos dos Aliados em 1945 (salvou-se a entrada, com frescos de Moritz von Schwind, a escadaria principal, o vestíbulo e o salão de chá), foi reaberta em 1955 com a ópera de Beethoven Fidelio – nos dias em que não há ensaios são organizadas visitas guiadas e o museu conta a história do edifício.

Também é possível ouvir piano em cafés como o Prückel, na Stubenring, 24, ou em tavernas como a Bernreiter, na Amtstrasse, 24-26, em Jedlesdorf, em Maio, quase sempre coincidindo com o dia da mãe, com concertos de música clássica e de ópera ao ar-livre nos seus pátios. 

E, entre tantas outras possibilidades musicais, não se deve perder uma visita à Casa de Mozart, na Domgasse, 5, a única residência do compositor que se conserva na capital austríaca – e onde viveu entre 1874 e 1787. Ao longo das suas salas, pode identificar-se melhor com a vida e o trabalho deste génio da música que nasceu em Salzburgo e que, com apenas seis anos, fez a sua primeira viagem até Viena para se apresentar perante a Corte. 

“Quando se acaba de ouvir um trecho de Mozart, o silêncio que se segue ainda é dele” – Sacha Guitry

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