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Há muito Portugal para descobrir de comboio

Por Carlos Cipriano

Vouguinha, Miradouro, Comboio Histórico, The Presidential. Até ao fim de Outubro, ainda rolam (ou vão rolar) nos carris composições especiais que piscam o olho aos turistas. Venha daí, conhecer Portugal à janela do comboio.

Vouguinha

O comboio dos afectos 

Não podia ser maior o contraste entre a imponente estação de Aveiro, onde está estacionado o Vouguinha, e a geografia por onde este vai circular. É só o tempo de ele percorrer uns 500 metros e entramos noutro mundo: um caminho-de-ferro de via estreita que, logo à saída da estação, faz uma curva apertada e circula junto a um muro, para logo irromper por uma paisagem de povoamento disperso e desordenado. O Vouguinha até parece que atravessa os quintais das casas (muitas delas do tipo maison) à beira da linha. Cruza estradas e caminhos, irrompe por eucaliptais, quintas, milheirais, hortas, florestas, vinhas, matos e silvas.

E com poucas rectas. A composição vai ziguezagueando pelo terreno, em curvas e contracurvas apertadas, para gáudio dos passageiros, que assim conseguem fotografar toda a composição a partir de qualquer janela ou dos varandins onde muitos preferem viajar.

Mas o que mais caracteriza este comboio é o ambiente de festa que proporciona, tanto a quem nele viaja como aos que o vêem passar. As pessoas saem de casa para acenar ao Vouguinha, as crianças correm até à linha para dizer adeus. Os idosos à porta das casas encontram neste acenar ao comboio uma pausa na solidão dos dias, uma ruptura com a monotonia do quotidiano, um momento de proximidade com os viajantes, que também eles não poupam nos acenos e nos sorrisos, numa festa permanente à passagem do comboio. E até os próprios automobilistas que estão parados nas muitas passagens de nível desta linha não mostram sinais de aborrecimento e também respondem aos acenos destes excursionistas sobre carris.

O que tem esta composição de tão especial? Por comparação com as velhas e grafitadas automotoras da linha do Vouga, este comboio é um espectáculo para os sentidos e impõe-se na paisagem, fazendo com que os próprios carros abrandem para o acompanhar ao lado sempre que via férrea e a estrada são vizinhas.

Uma locomotiva fabricada no País Basco em 1964 reboca três carruagens de três nacionalidades que remontam a um tempo em que não havia União Europeia: uma belga, uma portuguesa e uma alemã. Construídas, respectivamente, em 1908, 1923 e 1925. Todas recuperadas nas oficinas da EMEF (empresa da CP) nas oficinas de Contumil (Porto), num trabalho de restauração minucioso.

É isso que destaca Casimiro Madaíl, de Ílhavo, que tem passado a viagem num varandim, de máquina fotográfica em riste. “Este material está muito bem recuperado. Gosto do contraste entre viajar num Alfa e num comboio destes, que nos leva a tempos inacessíveis”, conta. E explica o entusiasmo pelas fotografias: “Não sou um aficionado dos comboios, mas isto tem para mim um interesse fotográfico. O próximo passo é ir fotografar os comboios do Douro.”

José e Aurélia Meireles vieram do Porto. Ele engenheiro químico, ela analista, estão ambos reformados. “Soubemos disto pelo Jornal de Notícias e comprámos um bilhete integrado. Tem sido uma viagem muito agradável e acho que está a correr de forma impecável. Só acho que falta um pequeno apoio de bar”, diz José Aurélio. Quanto ao resto, não se queixa do desconforto das carruagens: “O comboio é um meio de transporte muito sedutor. Achamos que para se recriar o tempo destes veículos tem de se dispensar o ar condicionado e apreciar a experiência da dureza dos bancos de madeira.”

Há, porém, aspectos a melhorar. Os passageiros não podem circular livremente pela composição e ficam “presos” na sua carruagem, só podendo mudar para outra durante as paragens. É que, devido a um alegado problema de segurança, a CP proíbe que se usem os passadiços de intercomunicação, ao contrário do que acontece no comboio do Douro, em que tal problema não se coloca.

Por esta altura já o Vouguinha percorreu — a uns estonteantes 35 Km/hora — os também 35 quilómetros que separam Aveiro de Macinhata do Vouga. Demorou uma hora e meia porque parou algumas vezes para se cruzar com outros comboios. Nesta estação, os passageiros têm direito a uma visita guiada ao museu ferroviário local realizada por um grupo de actores do TEMA – Teatro Espontâneo de Macinhata. As encenações dão vida à história dos comboios no início do século XX.

Ana Paula Lima, professora, veio de Coimbra com o marido. “Estamos a gostar imenso, é uma experiência muito engraçada. As carruagens não são incómodas e é uma viagem que se faz muito bem”, diz.

Mas, mais do que o comboio, Ana Paula valoriza as paisagens e o contacto com os costumes locais. “O facto de haver um grupo etnográfico [que anima a viagem no comboio] é muito interessante e a visita a Águeda está bem pensada. Também gostei do miminho do espumante [oferecido à chegada a Macinhata] e dos bolinhos [oferecidos a bordo]. Acho que a relação qualidade-preço está a corresponder às expectativas.”

José Angel também acha que 29,50 euros não é muito caro, mas ressalva que talvez o seja “para o bolso dos portugueses”. Ele e a mulher, Mercedes Garcia, são de Sevilha confessam-se fãs de Portugal, onde desde crianças passam férias todos os anos. José assume-se como um entusiasta dos comboios. “Isto é uma maravilha! Já tínhamos visto o comboio no Youtube, mas ainda é melhor ao vivo.” Uma apreciação que não é gratuita e que contém um olhar crítico, porque ambos trabalham em turismo na Andaluzia.

A viagem de regresso não diminui o entusiasmo, se bem que haja menos gente pendurada nas janelas. O programa inclui uma paragem de uma hora e um quarto em Águeda para visitar a cidade. Afinal, o município é parceiro da CP na organização do comboio histórico.

Desde 1 de Julho, este produto arrancou logo com uma taxa de ocupação de 85%. Nas duas últimas semanas do mês já esteve esgotado, pelo que é aconselhável reservar lugar com antecedência.

Excepto se preferir fazer a viagem do exterior, como o fez João Paulo, natural de Águeda, que perseguiu o comboio o tempo todo. Às tantas, até já os passageiros conheciam o homem que viajava com três crianças e que conseguiu ultrapassar o Vouguinha 18 vezes. O facto de ser da região permitiu-lhe estudar os sítios onde posicionar-se para obter as melhores fotos. 

À primeira vista poderia ser um “maluquinho dos comboios”, mas não. “Sou aficionado pela fotografia e como é um comboio diferente dos outros, fiz isto”, conta à chegada a Aveiro, explicando que as fotos vão ser colocadas nas redes sociais dedicadas à fotografia. Agora, o próximo passo é fazer a viagem dentro do comboio, o que motiva sorrisos de satisfação nas crianças que o acompanham.

Se dúvidas houvesse sobre o grau de satisfação desta viagem, a prova é que, na chegada a Aveiro, muitos passageiros não arredam pé e ficam a ver (e a fotografar) as manobras da locomotiva que vai inverter a marcha e mudar a composição para outra linha, onde ficará estacionada.

“As pessoas gostam cada vez mais de experiências e isto é uma boa experiência”, diz um funcionário da CP que costuma acompanhar este comboio. “Elas entusiasmam-se com isto e mal saímos de Aveiro já estão a pôr as fotografias no Facebook."

Comboio histórico do Vouga
Aveiro – Macinhata do Vouga - Aveiro (72 quilómetros ida e volta)
Partida: 13h40; chegada: 19h01
Preços: 29,50€ adultos; 26,50€ crianças (30% de desconto nas viagens de ligação a Aveiro)
Datas: sábados até 30 de Setembro

 

Miradouro

O comboio chegou com uma hora de atraso cheio de passageiros felizes

É bonito, colorido, espaçoso, robusto e barato. E tem um ar vintage. O novo comboio turístico que a CP (re)colocou a circular na linha do Douro é, na verdade, um inter-regional regular, com tarifas normais e acessível a qualquer passageiro que nele queira viajar, sem outra condicionante que não seja a obrigação de reserva de lugar. Chama-se Miradouro e é composto por carruagens suíças dos anos 1940 e 50 que possuem janelas amplas que se podem abrir para contemplar a paisagem. A experiência custa apenas 9,60 euros do Porto à Régua ou 11,50 para o Tua.

O Miradouro parte diariamente da estação de São Bento às 9h25 e chega às 12h28 ao Tua. Este em que a Fugas viajou chegou ao destino com uma hora de atraso, mas com uma centena e meia de passageiros nada aborrecidos. Já veremos porquê.

Por enquanto saímos de São Bento sob os disparos das máquinas fotográficos dos turistas — que àquela hora já arribam à estação que é um spot turístico obrigatório da Invicta —, e que estranharam aquele comboio com um ar de século XX, mas bem pintado e colorido. Em Campanhã entra o grosso dos passageiros. Segue-se Ermesinde às 9h43. A partir daqui, o Miradouro deveria lançar-se numa correria de uma hora e 45 minutos, sem parar, até à Régua. Mas isso não vai acontecer.

Olhemos para dentro. As carruagens, em tons creme e amarelo torrado, têm um ar pouco sofisticado. São simples, robustas, espaçosas e os assentos confortáveis. As janelas são largas e a luz entra a jorros.

Trata-se das carruagens Shindler. E se fazer turismo também significa experienciar e aprender para melhor fruir, aqui fica a explicação: as Shindler foram compradas pela CP à Suíça entre 1948 e 1950 para serem utilizadas nos suburbanos da linha de Sintra. Mas rapidamente foram afectadas aos comboios de toda a rede, acabando progressivamente por se circunscreverem às linhas do Minho e do Douro, do qual passaram a fazer parte da sua geografia ferroviária até ao final do século XX.

Em 2009, um presidente da CP insensível ao seu potencial turístico, mandou demolir praticamente toda a frota desta série. Salvou-se uma para o museu ferroviário — a que tinha transportado a urna de Salazar no seu funeral de Belém para Santa Comba Dão. Felizmente que, em 2004, antes da demolição da frota, a empresa tinha recuperado oito destas carruagens para serem transformadas no Comboio do Vinho do Porto: uma composição destinada a comboios charter numa parceria pouco frutuosa entre a CP e as quintas do Douro.

Quatro anos depois, o comboio era encostado nas oficinas de Contumil (Porto), até que, em 2016, uma administração da CP de mente mais arejada decidiu mandar limpar-lhes o pó, apertar uns parafusos, pintá-las e ...pô-las a circular nos carris. Afinal, apesar da sua provecta idade, ainda hoje na moderna Suíça circulam algumas das suas irmãs gémeas.

O Miradouro pára em Caíde. Por esta altura, os disciplinados passageiros que entraram no Porto ocuparam os seus lugares e iniciaram a viagem sentados e meio amodorrados, circulam agora pelas carruagens em alegre algazarra, abrem as janelas, tiram fotografias.

A partir de Caíde o comboio passa do século XXI para o século XX. A linha dupla, electrificada, com modernos sistemas de sinalização, dá lugar a uma via única onde a exploração depende inteiramente dos ferroviários que, nas estações, vão dando avanço aos comboios telefonando entre si.

Os passageiros percebem isso quando, às 10h25, o Miradouro se detém agora na pacata estação de Vila Meã. Para cruzar com outro? Não. Para esperar que o regional que segue à nossa frente chegue à estação do Marco e o chefe de estação autorize que o nosso prossiga a viagem.

No Marco de Canaveses a cena repete-se. O regional vai avariado e a perder tempo. E espera-se meia hora que chegue a Mosteirô até que o Miradouro tenha ordem para avançar.

No entretanto, os passageiros passeiam pela estação. As carruagens, vermelhas e amarelas, contrastam com o azul da locomotiva, permitindo fotos coloridas, logo partilhadas nas redes sociais. Junto à máquina a diesel, um magote faz perguntas ao maquinista que, diligente, se desfaz em explicações técnicas sobre o funcionamento da locomotiva. O revisor é outra figura simpática com quem os passageiros conversam animadamente.

E de novo em marcha é agora que chegamos ao Douro. A seguir ao túnel do Juncal há como que um túnel de arvoredo que, pouco a pouco, deixa descobrir nas clareiras o rio lá muito em baixo. A partir de agora o comboio inicia uma descida até Mosteirô, ficando mesmo à beirinha das suas margem, das quais não vai mais separar-se.

“Espectacular!”. Luís Teixeira veio de Coimbra integrado num grupo de 17 amigos e não sai da janela, vendo como a composição serpenteia pelo traçado sinuoso junto ao rio. “Pensei que as carruagens fossem ainda mais antigas. Estava a contar com algum desconforto, mas afinal isto até é confortável”, diz.

Na mesma carruagem viaja Idalina Andrade. É do Funchal e está de férias no continente. “Vim fazer esta viagem porque achei engraçado. Acho isto lindíssimo, o rio sempre aqui ao lado”, comenta. “É diferente e quase tão bonito como a Madeira”, ri-se, acrescentando que acha os assentos muito cómodos e que o preço desta viagem até é muito barato.

Uma opinião partilhada por Miguel Marques, do Porto, que acha o preço “muito razoável”. A namorada, Margarida, é neta de um revisor da CP e já conhecia a linha do Douro, mas para Miguel esta viagem é uma estreia. “Está a ser muito agradável. O poder abrir as janelas dá um ar completamente diferente à viagem porque podemos tirar fotografias e sentir o ar puro.”

O tal regional que não se avista mas que condiciona a nossa marcha continua a atrasar e o Miradouro vai parando também em praticamente todas as estações à espera de via livre. Uma oportunidade para os passageiros apreciarem azulejos e sentirem que viajam também no tempo, pois por aqui ainda não passou a fúria dos criminosos da modernidade que destroem um património ferroviário ímpar.

Marouf Ghegediban e Brigitte Fleury vieram de França e são dos poucos estrangeiros a bordo. Vão ficar no Pinhão e regressam à tarde no mesmo comboio para o Porto, onde estão alojados. Apesar de reservados e de se manterem à margem da relativa confusão que grassa na carruagem, dizem que estão a gostar. “O comboio tem muito espaço e é muito confortável. E é festivo... Vive-se aqui um bom ambiente”, diz Brigitte, agora surpreendida quando sabe que as carruagens em que viaja são suíças, logo, algo francófonas. “É uma viagem dentro da viagem”, remata.

Quando a locomotiva 1413 apita ao chegar à Régua já passa do meio-dia e o comboio já soma 40 minutos de atraso. A coisa continua complicada. O regional tarda em chegar ao Tua, mas agora é preciso esperar também por outro comboio em sentido contrário. Nos próximos 45 minutos o Miradouro fica parado na Régua e os seus passageiros — que não têm pressa — agradecem: vão comprar bolinhos, beber um copo, desentorpecer as pernas, ver o rio, passear na marginal.

Depois o comboio retoma a marcha e ruma ao Pinhão e ao Tua, sempre num permanente namoro com o rio, as águas ao nível da via férrea, os vinhedos à volta, as quintas bem cuidadas e antigas ruínas agora transformadas em alojamentos para turistas.

Quando o Miradouro chega à emblemática estação do Tua, ninguém se queixa do atraso. Mas ninguém disfarça que está com fome. Os três restaurantes da terra — com destaque para o famoso Calça Curta — e uma velha taberna agora com um nome pretensioso e um menu de tapas, agradecem este recrudescer do interesse pelo Douro.

Comboio Miradouro
Porto – Tua – Porto (286 quilómetros ida e volta)
Partida: 9h25; chegada: 20h30
Preço: 23€
Datas: todos os dias até 30 de Setembro

 

Comboio Histórico do Douro

Uma viagem no tempo no comboio a vapor do Douro

Os primeiros curiosos começam a rondar a composição logo depois de almoço. O comboio só parte às 15h22, mas há quatro horas que os dois maquinistas estão de volta da locomotiva num trabalho invisível para os passageiros que em breve vão desfrutar da viagem no comboio a vapor do Douro.

A 0186, como se designa esta locomotiva, tem de ser acesa lentamente para não provocar fissuras na caldeira. A preparação de uma máquina a vapor exige um trabalho metódico com especial cuidado para a lubrificação das bielas, dos rodados, das alavancas. Quando, à medida que for aquecendo, a pressão da caldeira chegar aos oito quilos, está pronta para manobrar e ser atrelada às carruagens de madeira que formam o comboio histórico.

A sua chegada à plataforma de partida provoca uma onda de excitação entre os passageiros. E não se diga que são só as crianças que se entusiasmam com a aproximação do monstro de ferro e aço. Toda a gente procura o melhor ângulo para fotografar a locomotiva e há quem não descure os pormenores das chapas metálicas, os dourados que brilham com o reflexo do sol, as lanternas, os intrincados mecanismos pintados de vermelho e preto vindos de um tempo passado. A chegada do Grupo de Cantares Socalcos do Corgo, que atravessa a plataforma a distribuir música e sorrisos, dá um ar ainda mais animado à estação da Régua. O comboio está pronto para partir.

E a partida é feita com o clássico apito que ecoa pelo vale. A 0186 e as cinco carruagens de madeira saltitam ao passar pelas agulhas da estação, atravessam a ponte metálica sobre o rio Corgo, entram num túnel que provocas gritos de entusiasmo (ou de nervosismo) nalguns passageiros e alcança a barragem de Bagaúste, onde os barcos do Douro sobem e descem pelas eclusas para prosseguir viagem.

Poucos dos 200 passageiros permanecem sentados nos bancos (a capacidade deste comboio é de 250). As janelas abertas e os varandins nas extremidades das carruagens são os locais preferidos para viajar e desfrutar de uma viagem que está ao nível das melhores paisagens ferroviárias do mundo.

Linha férrea, rio, socalcos, vinhedos, quintas. É merecido o título de Património Mundial da Humanidade atribuído ao Vale do Douro. Que o digam os estrangeiros e portugueses, deslumbrados com a paisagem.

A estação de Covelinhas aparece ao virar de uma curva. É uma estação singela mas bonita, com a típica arquitectura das estações do Douro: o edifício de passageiros com a casa do chefe de estação no primeiro andar, os azulejos, a cobertura metálica sobre a gare e o cais de madeira onde se guardavam as mercadorias. Um dia, quando a linha do Douro for modernizada, a Refer (agora designada Infraestruturas de Portugal) deverá pensar muito bem como conciliar a preservação do património histórico ferroviário com as necessidades de uma linha electrificada.

Entre os barcos de cruzeiro do Douro e o comboio histórico homónimo poderia haver alguma rivalidade, mas tudo indica que a sintonia é total. Quando se avistam trocam silvos de um lado, apitos do outro e uma multidão de passageiros troca vigorosos acenos entre o rio e a linha de caminho-de-ferro. Na verdade, por estas paragens não há mais ninguém para cumprimentar. Não há estradas, não há aldeias. Só a linha do comboio, os túneis e o rio. Mas também — helas! — uma realidade que emerge: antigas ruínas que são agora resorts de luxo à beira-rio, feitos de casas de xisto e onde preponderam fantásticas piscinas só avistadas desde o comboio. 

A chegada ao casario branco do Pinhão é um “acontecimento” nesta viagem pelo tempo. A vila é atravessada quase em apoteose com a 0186 a silvar até se deter em frente aos magníficos azulejos da estação, bem cuidada, que agora acolhe uma wine house. “Tapas, Porto e [pastel de] nata” anuncia um placard na esplanada. Eis um bom resumo do que é hoje o turismo no Douro.

Alguns passageiros provam e compram vinhos. Outros dirigem-se para a frente do comboio, onde assistem curiosos à tomada de água pela locomotiva. A parafernália de telemóveis, tablets, máquinas fotográficas e de filmar regista o momento.

João Santa, um dos maquinistas de serviço e o inspector de tracção Faia afadigam-se de novo em torno da máquina, lubrificando-a e verificando os mecanismos. A CP tem aqui uns bons relações públicas — são pacientes, simpáticos e conseguem responder às perguntas dos indiscretos passageiros sobre o funcionamento da locomotiva.

Lubos Pokrifcak é eslovaco e a sua namorada Rebeca Ortega é espanhola. Estão de férias em Portugal e viajavam entre Lisboa e o Porto no Alfa Pendular quando viram um filme promocional sobre o comboio histórico. Decidiram logo ali realizar a viagem. “Muito bom! Genial”, dizem ao mesmo tempo, sublinhando a beleza da paisagem. Mas referem ambos que o poder ver a manutenção da máquina durante a viagem, a tomada de água, o contacto com as estações onde os ferroviários ainda recebem os comboios na agulha de entrada com uma bandeira, tudo isso faz parte da experiência da viagem. “É como viajar no tempo”, diz Lubos, que elogia ainda o “minucioso trabalho de recuperação destas carruagens”.

De novo em marcha, faltam 15 quilómetros até ao Tua. São mais 20 minutos de puro prazer. Rio e linha férrea distam às vezes poucos centímetros. Há quem comente que saberia bem um mergulho refrescante nas águas do Douro. A velocidade não é grande. O comboio histórico do Douro não passa dos 50km/hora. Pelo menos, presume-se que assim seja. A locomotiva não tem conta-quilómetros, mas os maquinistas calculam a velocidade pela pressão da caldeira.

Vista do rio, a paisagem é majestosa: a máquina com o seu penacho de fumo e as cinco carruagens de madeira a saltitar atrás. É esta a visão de quem está no Tua à chegada do comboio. Dentro da composição, há quem tenha um calafrio ao passar pela ponte metálica sobre o rio Tua. “Ui! Isto é tão alto!” E há quem resmungue ao avistar o paredão da inestética barragem que a EDP ali construiu, destruindo a linha de via estreita do Tua.

Dessa icónica linha restam algumas carruagens e vagões abandonados na estação de Foz do Tua. Uma estação que é uma espécie de museu ferroviário vivo e que também já se rendeu ao turismo, pois no seu átrio há bancas com venda de produtos regionais.

A 0186 — a verdadeira vedeta deste comboio — é desatrelada e vai entrar numa plataforma giratória para inverter o sentido da marcha. Trezentos e sessenta graus depois, está agora com a frente voltada para a Régua e vai outra vez abastecer-se com mais água. Encheu os depósitos na Régua, no Pinhão e no Tua. Ao todo, 24 mil litros de água. Na viagem de regresso, como é a descer, não vai precisar de abastecer a meio do percurso.

Esta “velha senhora” tem 92 anos de idade. Foi construída na Alemanha em 1925 pela Henschel & Sown e enviada para Portugal como indemnização da I Guerra Mundial. Andou pelo Alentejo e Algarve a rebocar comboios de passageiros e de mercadorias até aos anos 50 e foi depois transferida para o Douro e Minho, onde acabou os seus dias em meados dos anos 70. A CP “ressuscitou-a” trinta anos depois.

E as carruagens? Três delas datam da década de 30 do século passado. Uma fazia os suburbanos do Porto e duas circularam na linha da Beira Alta. Mas há ainda mais duas carruagens curiosas, divididas por compartimentos que separam a 1.ª e a 3.ª classe e ainda um pequeno furgão para guardar mercadorias. Estas terão sido construídas nos finais do século XIX ou nos primeiros anos do século XX.

Pedro Lourenço não se cansa de fotografar. Integra um grupo de 20 pessoas que veio de Gondomar para fazer a viagem. Todos da mesma família. A ideia foi sua. Emigrante na Alemanha, viu um dia num canal brasileiro uma reportagem sobre o comboio histórico do Douro e logo ali decidiu que haveria de o fazer nas férias. “Estou a achar isto interessante. É uma viagem bonita. Pelo menos, todos estamos a gostar. Só achamos que é um bocado caro. Para uma família de quatro ou cinco pessoas, é muito dinheiro.”

E o que gostou mais? “Gostei de tudo. Nem sei quantas fotografias já fiz. Já tenho mais de duas horas de filme gravadas”.

Comboio Histórico do Douro
Régua – Tua – Régua (68 quilómetros ida e volta)
Partida: 15h22; chegada: 18h32
Preço: 42,50€ adulto, 19€ crianças (há descontos nas viagens de ligação à Régua).
Datas: sábados e domingos até ao fim de Outubro.

 

Comboio presidencial regressa em Setembro

O mais luxuoso comboio português, o Presidencial, volta aos carris em Setembro e Outubro, durante a época das vindimas, com viagens gourmet entre o Porto e o Vesúvio. As refeições serão confeccionadas por chefs portugueses e estrangeiros, alguns com estrelas Michelin. A experiência, organizada pela Fundação Museu Nacional Ferroviário, inclui viagem entre o Porto e o Vesúvio (concelho de Vila Nova de Foz Côa), onde haverá uma prova de vinhos.

“The Presidential”, como agora se designa, é composto por uma locomotiva a diesel que reboca cinco carruagens e um furgão. A carruagem mais recente foi comprada à Alemanha nos anos 30 do século passado, mas as outras eram veículos do tempo da monarquia, datadas de 1890, que foram adaptadas às condições tecnológicas e de comodidades do século XX. 

A Douro Azul tem também projectos de turismo ferroviário para a linha do Tua, tendo a empresa adquirido uma controversa máquina a vapor para fazer esse serviço. Mais recentemente, o empresário Mário Ferreira anunciou que tinha comprado à CP uma verdadeira locomotiva a vapor para a recuperar. O FUGAS questionou a Douro Azul sobre estes projectos ferroviários, mas não obteve resposta. 

 

Linhas que valem a pena

Nem só a bordo de comboios turísticos se pode fazer turismo ferroviário. Mesmo a bordo de composições regulares é possível passear e apreciar a paisagem. A Fugas sugere-lhe quatro linhas que valem a pena.

Beira Baixa

Entre o Entroncamento e Vila Velha de Ródão, o comboio vai sempre ao lado do Tejo. Avista-se Vila Nova da Barquinha, Almourol, Constância, Abrantes. Depois a paisagem humanizada reduz-se e fica só o rio e a via férrea num verdadeiro regalo para a vista.

A CP tem parcerias para fazer turismo de aventura em Belver e Ródão que incluem viagem e actividades náuticas.

Minho

Esqueça os primeiros quilómetros da linha que liga o Porto a Valença. Mas, passada a periferia da Invicta, preste atenção ao exterior, porque a paisagem minhota impõe-se e a beleza aumenta à medida que se ruma para norte. Depois de Viana do Castelo a linha aproxima-se do mar e do rio Minho. Passa-se a praia de Âncora, Caminha, Vila Nova de Cerveira, avista-se a Galiza do outro lado e termina-se a viagem perto das muralhas de Valença.

Oeste

Uma viagem no tempo, que vale nem que fosse pelas estações e o seu património azulejar. Saindo de Lisboa, e depois da penosa travessia da linha de Sintra, em breve passa a sentir-se na província ao ver desfilar as estações de Mafra e Malveira e apeadeiros de nomes estranhos como Jerumelo, Sapataria, Zibreira-Gozundeira, Feliteira. Dois Portos faz recordar que estamos em terras de vinhos, tal como, mais à frente, Torres Vedras e Bombarral. Em Runa avista-se o majestoso edifício setecentista que é hoje lar do Exército. Em Torres passa-se ao lado das termas dos Cucos. E depois alternam-se pinhais e vinhedos até ao Bombarral, onde passam a predominar os pomares até às Caldas da Rainha. Aqui, em frente à estação, vale a pena espreitar uma fonte que é o início da rota bordaliana, destinada a perpetuar a memória de Bordalo Pinheiro na cidade.

São Martinho do Porto está a oito minutos de comboio, com a baía a 100 metros de estação. Depois o traçado da linha é salomónico e passa em Valado dos Frades, equidistante em seis quilómetros de Nazaré e Alcobaça. Marinha Grande e Leiria sugerem turismo industrial e Monte Real faz pensar nas termas e no aeroporto militar que se pretende seja civil. E há mais termas, ao passar na Amieira, até se avistar o Mondego e optar por se seguir para a Figueira da Foz ou para Coimbra.

Cascais

Os estrangeiros que visitam Lisboa que o digam. São só 26 quilómetros e os alfacinhas estão habituados e não lhe apreciam a beleza. Mas, para quem vem de fora, são 40 minutos de deslumbramento através da mais bonita linha suburbana da Europa, que acompanha um estuário que parece um mar até chegar ao Atlântico.

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