Se a ideia era devolver à população pelo menos um pequeno troço do rio Uíma, parece que o objectivo da autarquia de Santa Maria da Feira foi conseguido. “O povo nem dorme para vir para aqui caminhar. Foda-se!” O desabafo vernacular vem de uma mulher de meia-idade que acaba de sair do carro no já quase cheio parque de estacionamento do Parques das Ribeiras do Rio Uíma, o principal, perto da ETAR de Fiães (não, não é um mau prenúncio).
Põe um boné amarelo torrado e dirige-se para o trilho, do lado da freguesia de Fiães — separado por uma estrada está também um pequeno troço, já do lado da freguesia vizinha, Lobão. Passam pouco das 9h, a manhã de semana de início de Agosto está fresca e quando mergulharmos no percurso mais fresca parecerá — as copas das árvores acompanham-nos quase sempre. E é verdade, há um movimento intenso neste parque onde a natureza se revela desde passadiços quase sempre assentes em estacas, ou não estivéssemos num vale mais ou menos alagado, sobretudo no Inverno. O rio Uíma (que desagua no Douro) é a via estruturante, mas inúmeros ribeiros o alimentam, formando um ecossistema ribeirinho.
Este ecossistema foi, aliás, o mote para recuperar esta zona para a população local — a maioria dos frequentadores do parque —, que até aos anos de 1960 vinha muito para aqui. Havia muita agricultura, refere Marina Rodrigues, engenheira ambiental da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, mas, entretanto, tinha sido quase tudo abandonado e ocupado por silvados. Então surge um conceito “inovador”: “A manutenção ligada à ecologia”, explica Pedro Teiga, biólogo, especialista em recuperação de rios. O que significa, na prática, cuidar-se dos ecossistemas para que sejam regenerados; o que poderá significar, no futuro, um ecossistema em equilíbrio, sem manutenção. “Para já não, há [plantas] invasoras”, nota Marina Rodrigues — como as trepadeiras, muitas “pepino-estrelado”, que “atrofiam” troncos. E que ninguém se iluda. Este “não é um parque urbano”, avisa Pedro Teiga, “o conceito aqui é de preservação da natureza, da fauna e flora”. O que na prática significa, por exemplo, nada de zona de piqueniques; aliás, nada de sair do passadiço (há uma zona que está a ser reabilitada para poder ser acedida), colher plantas, perturbar a fauna.
Começamos então o nosso caminho com o salgueiral de um lado e a galeria ribeirinha do outro. O rio, estreito, corre suavemente por entre abóbodas de árvores onde o sol não entra. Alguns dos salgueiros foram plantados, não por capricho, mas porque faziam parte da natureza aqui. Há-os em arbusto e árvores e estão acompanhados de outras espécies que compõem o habitat de um salgueiral, alguns choupos, freixos e carvalhos-alvarinhos, por exemplo, mas são os lírios amarelos que saltam à vista. A tranquilidade é quase sempre a regra neste espaço que dir-se-ia intocado, com excepção do passadiço. Mas essa é precisamente a ilusão. Porque se aqui nada é “antropocêntrico” e tudo foi criado pela natureza, contou, isso sim, com a ajuda do homem: foram determinadas espécies-alvo que existiram, outras que se preservaram e melhoraram e tudo é monitorizado para manter o equilíbrio neste ecossistema específico. Afinal, “cada rio tem o seu ADN próprio”, sublinha Pedro Teiga. E assim ajudou-se ao florescimento deste “hot spot de biodiversidade a 20 minutos do Porto”. “Quem criou este passadiço foi a biodiversidade. Se fosse mais um trilho de madeira por que é que a Europa ia financiar?”, lança Pedro Teiga à laia de retórica.
Lugar do primeiro beijo
Então prosseguimos, mergulhando numa galeria ripícola onde confluem vários ribeiros com o Uíma — um deles está seco. Aqui, o elemento-chave é o amieiro, “naturalmente instalado”, e o seu sistema radicular contribui para a estabilização das margens e a purificação da água (noutros pontos isto foi feito com técnicas de engenharia ambiental). Na água haverá lontras (são esquivas), já houve enguias (por aqui chamadas eirós) e há bogas do Norte — podem pescar-se desde que se tenha licença. Já vimos muitos amieiros e salgueiros, as árvores dominantes deste ecossistema, veremos freixos, cerejeiras-bravas, sabugueiros, medronheiros, erva-doce — e silvados: “No início as pessoas ficavam admiradas, interpelavam-nos porque achavam que não estávamos a fazer o nosso trabalho. Agora já percebem que se cortamos num sítio e não noutro é por um motivo. O mesmo se passa com as podas das árvores”, recorda Pedro Teiga.
Ficaremos a admirar libelinhas que se vão juntando perto de um charco de água parada (artificial, com funções didácticas), veremos carriças a saltitar diante de nós, lagartos que aparecem e desaparecem num ápice, borboletas (incluindo a pavão-diurno, espécie quase ameaçada) a revoltearem no ar; escapam-nos a rã ibérica e o rouxinol branco que companheiros vêem; escutamos o som metálico do guarda-rios e, já no final, uma águia de asa redonda rondará por cima de nós; ficarão por ver salamandras, a lusitânica e a de pintas amarelas, ou as garças reais, por exemplo. E estes são apenas alguns exemplos dos encontros, imediatos ou não, que podemos ter com a fauna e flora no Parque das Ribeiras do Rio Uíma.
Um desvio leva-nos a um beco com mesa e bancos de madeira; outro à torre de observação de aves. Ladeamos um milheiral com um espantalho no meio (terreno privado que nos afasta por momentos da água e nos recorda que este é território agrícola, também) e chegamos à outra entrada do parque. Inversão de marcha é a opção, mas como são cerca de dois quilómetros sempre planos, não pesam nas pernas. Na antiga zona de banhos, a “Preta e Branca”, a primeira mais profunda, destinada a homens, a outra a mulheres, algumas pessoas amontoam-se em volta da placa de informação, tiram fotos (não faltam painéis informativos, assim como sinalização em Braille, no chão, para que depois se possam descarregar os ficheiros áudio no site do parque). “Isto é um sonho, como projectista, gerar nas pessoas este espírito, este interesse”, desabafa Pedro Teiga — e aqui, além da beleza do local e da riqueza biológica, há o apelo da nostalgia: Pedro ouviu muitas histórias de casais que aqui se conheceram, aqui deram o primeiro beijo.
Há, recorda Marina Rodrigues, coisas que fogem ao controlo, porque este é um espaço aberto. Mas, por enquanto, não há sinal de vandalismo. Se calhar porque rapidamente as pessoas assumiram o parque como delas: “Cuidam e tomam conta. Têm um sentimento de posse.” A próxima fase será esticar o passadiço até à Caldas de São Jorge. “Agora será mais fácil.”
Localização: EN 326, junto à ETAR de Fiães, Santa Maria da Feira