De tão banalizados e repisados, de tão continuados no tempo, os chavões rapidamente se transformam em regra, em princípio incontestável, em certezas e garantias universais. Como sempre, os mitos são consequência do desconhecimento, da desinformação, de convicções sem qualquer fundamento objectivo ou científico. Por ser um meio relativamente confuso e misterioso, um meio fechado onde nada é facilmente mensurável e onde a subjectividade impera, o universo do vinho é especialmente permeável a este tipo de chavões. Por o vinho ser um tema complexo e onde poucos se sentem verdadeiramente confortáveis mas onde a masculinidade latina impõe uma quase obrigatoriedade de sapiência, a difusão de frases feitas encontra terreno fértil.
Não espanta, pois, que, tanto em conversas informais como em tertúlias, incluindo as dedicadas aos eventos do vinho, se percebam continuamente as mesmas frases, mitos antigos e modernos. Histórias passadas de geração em geração, interpretações desgarradas da realidade enraizadas no imaginário popular, convicções difíceis de contrariar. Ficções sem aderência à realidade que deverão ser desmistificadas, restituindo o vinho à simplicidade, autenticidade e realidade.
Crenças como o vinho rosé resultar de uma mistura entre vinho branco e vinho tinto, realidade proibida na União Europeia salvo casos muito particulares entre os quais se destacam os vinhos espumantes. O vinho rosé é elaborado exclusivamente com uvas tintas. A polpa da larguíssima maioria das uvas tintas é incolor, incapaz de acrescentar qualquer tonalidade ao mosto. São as cascas, ou melhor, os corantes existentes nas películas das uvas tintas que acrescentam a cor característica do vinho tinto. Quanto maior for o contacto com as peles, quanto maior for a extracção e o tempo de contacto, mais intensa será a cor consequente. Como os vinhos rosé passam muito pouco tempo em contacto com as suas películas, não dispõem de tempo suficiente para extrair grande intensidade de cor. Por isso o vinho rosé desfruta de uma tonalidade muito mais aberta, por vezes quase salmonada.
Outra convicção tradicional, sustentada não só pelo nome da denominação como pelo perfil mais acídulo dos vinhos que representam a região do Vinho Verde, é que esses vinhos são elaborados com uvas vindimadas verdes, em oposição ao vinho maduro, que deveria ser elaborado com uvas maduras. Apesar da trivialidade da imagem, mesmo entre alguns enófilos mais informados, a afirmação não hoje tem qualquer fundamento. Tal como as regiões do Douro, Lisboa ou Bairrada, a designação Vinho Verde representa unicamente o nome de uma região, não identificando um qualquer estilo de vinho. Como será evidente, os vinhos provenientes da região são elaborados com uvas em perfeito estado de maturação, tão maduras como nas restantes regiões portuguesas. Claro que, como região beneficiada por um clima especialmente húmido e temperado por temperaturas moderadas, as uvas retêm maior acidez que em climas mais quentes e com mais horas de sol… o que pode ser considerado como uma vantagem.
Outro tema recorrente é a alegada pureza dos “vinhos de lavrador”, vinhos sem aditivos externos, ao contrário dos “vinhos industriais”, dos vinhos de marca que teoricamente estariam cheios de químicos e de outras coisas igualmente pérfidas e potencialmente perigosas. Um conceito estranho e que a ter algum fundamento seria inversamente proporcional ao postulado, já que é muito mais plausível que os denominados “vinhos de lavrador” surjam viciados por algum defeito bacteriológico. Embora tenhamos tendência para o esquecer, convém recordar que o vinho é um produto alimentar, um alimento que vamos ingerir e que como tal é obrigado a seguir regras de higiene severas. O vinho é um produto alimentar puro, produto natural da fermentação de uvas que segue normas alimentares precisas na sua elaboração.
Mais curiosa é a associação popular entre a formação de lágrimas no copo e qualidade, encaradas como uma indicação segura de um vinho de enormes atributos. Uma noção esquiva, já que a formação de lágrimas no copo é um tema absolutamente irrelevante sobre a formação de qualquer juízo de qualidade no vinho. Quanto maior o volume de álcool maior será a tendência para a criação das lágrimas, tal como quanto maior o teor de açúcar maior a propensão para a formação da lágrima. Tal consciência denuncia que, perante a formação de lágrimas, poderíamos na melhor das hipóteses deduzir que o vinho seria alcoólico, doce, ou uma conjugação dos dois factores. No entanto, os detergentes usados na lavagem dos copos podem alterar profundamente esta lógica, inibindo ou induzindo o aparecimento da lágrima, destruindo qualquer hipótese da teoria das lágrimas.
Finalmente, o preconceito vigente que os queijos deverão ser harmonizados com vinho tinto ou, em alternativa feliz, por Vinho do Porto. Uma aparente certeza que, apesar do peso da tradição, nem sempre é garantida e que merece ser ferozmente disputada. Na verdade, esta realidade depende não só de gostos pessoais como do queijo ou queijos em concurso. Com queijos de pasta mole, que, convém recordar são os mais comuns e apreciados em Portugal, queijos como o Queijo da Serra, Queijo de Serpa, Queijo de Azeitão e tantos outros, o vinho branco costuma proporcionar harmonizações mais consistentes e mais felizes. A acidez natural do vinho branco contrasta melhor com a gordura e peso dos queijos de pasta mole… e com muitos outros queijos, mesmo de consistência mais dura. Se a proposta pode parecer estranha face à tradição, basta um ensaio para a prova e possível conversão. Experimente.