Fugas - Vinhos

Mário Lopes Pereira

A história atribulada da Touriga Nacional e outras castas

Por Pedro Garcias (crónica)

Não nos estamos a dar conta, mas os programas de apoio à plantação e reestruturação de vinhas em Portugal têm vindo a estreitar o número de castas para a produção de vinho. Só daqui a umas décadas iremos perceber os efeitos perversos dessa opção.

Nunca se deve desistir de uma casta, mesmo daquelas que agora têm pouco interesse enológico ou comercial. Se sobrevivem, é porque já foram úteis. No futuro, com alguma probabilidade, vão voltar a ter uma segunda oportunidade. As modas no vinho e as políticas públicas mudam demasiado depressa, para além de que não é possível antever os efeitos que as alterações climáticas vão ter na viticultura nas próximas décadas.

Uma coisa é certa: conservar a enorme diversidade de castas que existe hoje em Portugal é um trunfo sem preço num sector tão competitivo e imprevisível como é o do vinho. É por isso que choca não haver um programa de incentivo à preservação das vinhas velhas. Não nos estamos a dar conta, mas os programas de apoio à plantação e reestruturação de vinhas em Portugal têm vindo a estreitar o número de castas para a produção de vinho. Só daqui a umas décadas iremos perceber os efeitos perversos dessa opção.

A história da Touriga Nacional no Dão mostra-nos como nada pode ser dado como adquirido. No final do século XIX, esta casta dominava mais de 90% do encepamento das vinhas da região, de onde se julga ser originária. A segunda casta mais importante era a Alvarelhão. Nessa altura, a Touriga Nacional era plantada sem aramação e produzia bem. Com a filoxera, que arrasou grandes parte dos vinhedos, os viticultores do Dão começaram a substituir os porta-enxertos e as novas videiras tornaram-se menos produtivas. Pouco a pouco, a Touriga Nacional foi sendo preterida por outras castas mais produtivas. Numa primeira fase pela Baga, que se julga ser também originária do Dão, mas que hoje está associada à Bairrada, e depois pela Tinta Carvalha, a Moreto, a Tinta Pinheira, o Alfrocheiro, a Jaen e a Roriz, entre outras. Nos anos 70 do século passado, a presença da Touriga Nacional era de apenas 5% por cento. Em menos de um século, a que é hoje a principal casta tinta portuguesa passou de variedade hegemónica a casta residual. Bastou uma praga para mudar de forma radical a paisagem vitícola do Dão.

O que salvou a Touriga Nacional e a fez voltar a ganhar protagonismo foi o notável trabalho de estudo e selecção de castas para a produção de vinho do Porto desenvolvido por José António Rosas e o seu sobrinho João Nicolau de Almeida no Douro, na segunda metade da década de 70 do século passado. Uma década antes, Alberto Vilhena, o então director do Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão (CEVD), onde deixou um legado ímpar de estudos e de vinhos extraordinários e que tem sido continuado por Jorge Brites e Vanda Pedroso, já tinha evidenciado a excepcionalidade enológica da Touriga Nacional. Na sua ideia, o vinho tinto do Dão devia levar, no mínimo, 20% desta casta. Mas, nessa altura, os viticultores do Dão estavam mais preocupados com a quantidade do que com a qualidade.

Em 1981, e após muitas microvinificações, José António Rosas e João Nicolau de Almeida identificaram aquelas que consideravam as cinco melhores castas para o vinho do Porto e uma delas era a Touriga Nacional, na altura também quase extinta no Douro. As outras eram a Tinta Barroca, a Tinto Cão, a Tinta Roriz e a Touriga Franca. Quatro anos depois, arrancou o Projecto de Desenvolvimento Rural Integrado de Trás-os-Montes, que financiou a plantação de 2500 hectares de vinhas novas no Douro e a reestruturação de 300 hectares de vinhas já existentes, e, a partir daí, a Touriga Nacional voltou a ser procurada. De tal forma que, com a explosão dos vinhos tranquilos do Douro, acabou por se tornar na casta bandeira da região e, mais tarde, do próprio país. Hoje, a Touriga Nacional está plantada de Trás-os-Montes ao Algarve, mas já começa a ser vítima da sua própria fama, por incutir uma marca muito forte nos vinhos. Menos no seu solar, onde a crescente “touriguização” é vista como uma virtude e um desígnio e não como algo negativo, dado tratar-se da casta identitária dos vinhos tintos do Dão.

Nos brancos, esse papel é desempenhado actualmente pela Encruzado, mas nem sempre foi assim. Tudo indica que se trata de uma casta bastante mais recente do que a Touriga Nacional, embora também originária do Dão. Foi Alberto Vilhena quem primeiro se enamorou da Encruzado e a começou a utilizar nas suas vinificações. Até aí, a Assario Branco (a Malvasia Fina do Douro) e a Barcelo eram mais populares. Em 1985, a Encruzado já surgia em primeiro lugar na lista oficial de castas recomendadas, com sugestão para entrar numa percentagem de, no mínimo, 20% no lote dos vinhos brancos, e nos anos seguintes começou a expandir-se fortemente, graças, sobretudo, ao trabalho de enólogos como Manuel Vieira, na altura responsável pela Quinta dos Carvalhais, da Sogrape.

Na mesma lista de 1985, a casta mais recomendada era a Cerceal. Outra variedade aconselhada era a Cachorrinho, cuja contribuição não deveria exceder os 20%.  A Cachorrinho chama-se agora Uva Cão e, apesar de ter uma representação ínfima, é uma das variedades com maior futuro no Dão e em Portugal, dada a sua elevadíssima acidez natural.

Com o aumento crescente da temperatura na Terra, as castas de maior acidez vão voltar a ser essenciais. E o mesmo é válido para as castas que melhor resistem ao calor, como é o caso da Castelão. Além de se dar bem em regiões quentes, a Castelão origina vinhos que se encaixam nas tendências de consumo actuais. Vinhos muito aromáticos, macios  e frescos. No entanto, incompreensivelmente, esta casta está em acelerada regressão nas suas regiões tradicionais, a Península de Setúbal e o Alentejo, aqui, sobretudo, em detrimento de castas francesas, como a Syrah ou a Petit Verdot. Um erro colossal ditado pelas modas que está a colocar em causa a identidade vitivinícola daquelas regiões. Infelizmente, não é o único.

 

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