Apito e partida. A paisagem invernosa e húmida teima em manter-se. O inverno toscano parece redimir todos os pecados do mundo: é melancólico andar de comboio com o tempo invernoso mas é também um convite à introspecção. Entrego-me a doces pensamentos de antecipação mas a locomotiva silva estridentemente e desperta-me sem temor. Pára de chover quando descemos na estação em Lucca; o sol desponta por entre os farrapos de nuvens brancas, quente e vigoroso, enquanto o "comboio se afasta, uivando através da planície na direcção dos nossos desejos" ( Jack Kerouac, Pela estrada fora).
Entra-se pela vila através de uma muralha serpenteada de escadas e túneis. Uma avenida de árvores centenárias dá-nos as boas vindas. Mais à frente, a torre da catedral mostra-se nas suas duas cores características: a parte debaixo cor de tijolo e a partir de metade para cima de um branco contrastante. Contornamos a catedral e eis-nos defronte da fachada: branca, num mármore asséptico, é assimétrica para dar lugar à torre. A decoração é ricamente ornamentada e as suas arcadas certeiras fazem com que este edifício seja considerado um belo exemplar do estilo românicopisano. Saio.
A sombra derrama-se vinda do céu enquanto o sol rompe o céu em estilhaços de luz liquefeita. Da catedral caminhamos sem pressas pelas ruas estreitas e silenciosas de Lucca: a Piazza Napoleone, cuja irmã, Elisa Baciocchi, governou Lucca e onde agora me delicio a fotografar um carrossel dos antigos, que se encontra mesmo ao fundo da praça. "Infeliz daquele que se deixa mergulhar fundo de mais no antigo, pois perde a memória do presente" (Baudelaire, O pintor da vida moderna). Vero? Segue-se a Via Vittorio Veneto, com a sua igreja branca de San Michele, a casa de Puccini, a Torre dei Guinigi com azinheiras no alto é uma referência própria de Lucca. Uma mulher idosa passa por nós a barafustar: parece perdida num tenebroso mundo interior que a impede de manter um real envolvimento com este mundo exterior por onde passeamos.
A vilinha toscana parece guardada no tempo, fora deste mundo e a salvo de outros, harmoniosa e despretensiosa e, por isso mesmo, altaneira e digna. De regresso a Florença, apanhamos o comboio de Lucca às três e tal da tarde, numa estação deserta e brindada por um sol enternecedor e aconchegante. Ao apito do chefe da estação, o comboio reinicia a sua marcha. A paisagem corre silenciosa pelas vidraças da carruagem semideserta. Os pés descansam no banco da frente.
Gosto de comboios e do sussurro ténue das rodas a deslizarem nos carris, no cadenciado monótono da passagem das rodas pelas juntas dos carris. O comboio vai enchendo em cada paragem: casais vestidos de gala entram na minha carruagem: certamente para um reveillon qualquer e no páraarranca das estações os telemóveis não param para desejar as felicidades para o novo ano quase a iniciar. Lentamente, o burburinho vai-se apaziguando e a viagem retoma a sua quietude inicial. O dia vai findando sem pressas, dando lugar à noite que cai devagarinho. Espera-nos uma noite de festa, brindando ao novo ano, enquanto lá longe, num lugar recôndito de Lucca, baila pintado numa parede que "há que ir, para qualquer sítio, contando que seja para fora deste mundo" (Baudelaire).
Fugas n.º 531 - 24/07/2010