Fugas - dicas dos leitores

Todas as viagens

Por Jorge Rocha Mendes

De olhos bem fechados, o que pode acontecer em noites de insónia ou entalado entre dois desconhecidos numa qualquer viagem de avião, exercito-me a recordar com bastante realismo as cores, os cheiros, os ruídos, mas sobretudo as pessoas dos muitos sítios por onde passei .

São, por exemplo, 6h30 de uma manhã de Fevereiro, e o sol deverá nascer dentro de momentos, encoberto pelas nuvens cor de chumbo que cobrem quase todo o horizonte; atravesso o Tejo de barco e olho o casario de Lisboa que se vai mostrando mais a cada minuto que passa.

A essa hora, na aldeia do sul da Guiné onde passei um ano de serviço militar, as mulheres já se levantaram, puseram a água ao lume, deitaram os grãos dentro do pilão e vão começar o seu trabalho ritmado cujo som vai acordar toda a gente quilómetros em redor. Entretanto, os homens começaram a arrastar as cabras para a ordenha e o fumo que sai das cubatas ainda mal iluminadas vai-se misturar com o ar fresco da manhã e paira por momentos sobre os telhados de colmo antes de se perder na imensidão do arvoredo.

É ainda noite em Fez; já se ouviu há muito tempo o primeiro chamamento à oração e as dezenas de vozes dos muezzin fizeram-nos saltar da cama e assomar à janela para melhor ouvir aqueles sons pungentes e apelativos; pelas ruas estreitas da medina, os vultos dos crentes dirigindo-se para a mesquita mais próxima dão o sinal de mais um dia que começa.

Sempre de olhos fechados, penso que serão 11h30 no centro do continente indiano, junto dos templos de Khajurao; posso imaginar uma mulher de sari verde,que caminha descalça na relva bem tratada, levando nos braços morenos flores para o templo de Shiva. A mulher entrega as oferendas ao sacerdote que, sentado junto ao enorme lingam, procede à cerimónia votiva, espalhando as flores e os óleos sobre a pedra e agitando as campainhas presas ao tridente sagrado. Recolhida diante da divindade, reparo no cabelo muito negro e luzidio e na grinalda de flores que ela prendeu com engenho nas tranças bem tratadas. Tudo isto eu recordo e até consigo sentir o cheiro de lenha queimada vindo da aldeia vizinha.

Entretanto, devem ser 12h30 em Mrauk Oo, na costa ocidental da Birmânia; vejo nitidamente a longa fila de monges que se deslocam ao longo da rua principal, parando em cada casa para receber as dádivas da população. As mulheres fazem uma vénia, e entregam arroz cozido e laranjas que cada monge recolhe e cobre com o manto cor de açafrão, antes de prosseguir a caminho do convento. Daqui a umas horas, uma noite quente e húmida vai cair sobre a cidade, desaparecendo o ruído dos pássaros e uma extraordinária nuvem de insectos vai povoar a luz dos poucos candeeiros acesos.

À mesma hora, no Cambodja, mais precisamente em Pnom Penh, vejo-me a caminhar ao longo do cais do Mekong. No muro de granito que delimita a marginal, reparo nas mulheres que dão aos filhos um petisco de que tinha ouvido falar e que é vendido em carrinhos ambulantes. Constato que é mais repugnante do que pensava e a minha reacção provoca grande risota enquanto as crianças abrem muito a boca para mais uma colherada: trata-se de ovos cozidos com embriões de pintos e que são servidos retirando um pouco da casca, como se fosse uma tampa.

Posso dar um salto a São Francisco, onde serão 22h30, e ver-me a caminhar no bairro de Castro em busca dum café com Jazz em ambiente gay; ou, já de madrugada, espreitar o claustro mal iluminado do convento de San Bernardino, na Valladolid do sul do México, e assistir ao cortejo dos frades a caminho da igreja para as matina. Serão 4h00 (10h00 em Lisboa) e, apesar da hora matutina, o teor de humidade e o calor parece que ficaram agarrados às paredes caiadas de amarelo.

É altura de encarar a realidade de mais um dia de trabalho, um pouco exausto de tanta canseira.

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