Eram 16h. À hora marcada, chegámos ao cais de embarque. Era Outubro e a tarde estava óptima. Quente, mas não de mais.
Antes de ali chegarmos, a guia já nos tinha acompanhado numa visita à extinta corticeira Mundet e já nos tinha conduzido numa agradável caminhada pelo centro histórico do Seixal. Íamos entrar no Amoroso. Um varino construído em 1921, que integra a estrutura museológica municipal do Seixal — um museu muito especial. Um museu vivo que, entre vários recursos, conta com um acervo de dois botes-de-fragata (Baía do Seixal e Gaivotas) e um varino (Amoroso), que todos os anos, entre a Primavera e o Outono, passeiam pelos rios Tejo e Judeu, com recurso a técnicas tradicionais de navegação à vela.
O mestre da embarcação informou que, como o vento estava fraco, ia ter que ligar o motor. Mas não era por isso que as velas não iriam subir. Subiriam, pois. Porque o varino fica mais vaidoso com elas içadas, porque sempre davam alguma sombra e porque ainda havia esperança de que aquela brisa amena permitisse dar descanso ao motor.
“Vamos um pouco até lá fora”, disse o mestre. “Lá fora” é fora do aconchego da baía, no Mar da Palha, onde as águas do rio Judeu, timidamente, se juntam às do rio Tejo, já no seu estuário, em campo muito mais aberto.Desligou-se o motor. Ficámos parados, ou quase. Senti-me a flutuar num colchão de ar gigante, suspenso, à deriva, mas seguro, confortável. Era bom estar ali. Ouvia-se o som discreto da água a bater nas madeiras cansadas do resiliente Amoroso, como se fossem palmadinhas meigas nas costas de um velho amigo que se abraça com ternura.
O sol e a brisa amena acariciavam a pele, tranquilizavam a mente e revigoravam o corpo. A maresia completava o deleite dos sentidos. Se bem percebi, a grande maioria dos participantes vinha de fora, não necessariamente de longe. Eu estava em casa. Pelo menos assim me sentia. Conheço bem aquele (não) sítio. Pratiquei canoagem durante alguns anos. Fiz muitos passeios solitários naquelas águas, por aqueles “não sítios”. Também nessa altura gostava de parar no meio do rio e ficar à deriva, em silêncio, ouvindo a água a bater na fibra de vidro do caiaque, olhando à minha volta, vendo as margens, de fora, e sentindo-me privilegiado por isso.
Voltámos para dentro, que é como quem diz, deixámos o Tejo para voltar a entrar no Judeu. E lá estava a Ponta dos Corvos, com a primeira praia do Estuário do Tejo a receber a classificação de zona balnear de qualidade, pela Quercus. Do outro lado, ao fundo, o estaleiro Navaltagus onde, durante seis meses, o cacilheiro Trafaria Praia se transformou para dar origem ao projecto de Joana Vasconcelos para a participação de Portugal na Bienal de Veneza.
Logo de seguida, cruzámo-nos com o bote-de-fragata a quem a baía deu nome. Entre o varino Amoroso e as ruínas da indústria conserveira de outrora, passava o Baía do Seixal, rumo ao Mar da Palha. Acenos feitos e fotografias tiradas, voltaram-se as atenções para o centro histórico do Seixal. O bonito casario e a área que o envolve escondem muitas histórias. De quintas e de pescadores, de estaleiros navais, de calafates e de carpinteiros de machado. Aqui se construíram e invernaram muitas caravelas. Aqui se produziu a farinha com que eram fabricados os biscoitos que constituíam importante parte da alimentação dos navegadores quinhentistas. Terra de boa água, de boa gente, de corticeiros, de músicos, de sociedades filarmónicas, de “franceses” e “prussianos” e das suas aguerridas rivalidades.
O varino levou-nos um pouco mais para dentro da baía. Com muita calma. Passámos pelo Parque da Quinta dos Franceses e pela Quinta da Fidalga. Vimos moinhos de maré e um velho cacilheiro que agora é restaurante. Na marginal havia pessoas a correr, a caminhar e a andar de bicicleta. Nós navegávamos quase parados. Meia volta e o mestre apontou em direcção ao cais. O final da tarde evidenciava-se pela horizontalidade dos raios solares e pelas tonalidades quentes que lentamente iam vestindo todas as superfícies.
No caminho de regresso havia um relativo silêncio a bordo. A nostalgia do que ainda não tinha acabado sentia-se na contemplação colectiva de tudo o que rodeava a embarcação. Chegámos. Caminhei pelo pontão, em direcção a terra firme. Uma tarde destas preenche mais do que muitos dias banais. Sentia-me bem e, no caminho para casa, ocorreu-me um trocadilho fácil que não me voltou a sair da cabeça: o Seixal é amoroso.