Fugas - dicas dos leitores

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As complicações e os perigos aproximam as pessoas

Por Augusto Lemos

Partimos, eu e a Maria da Conceição, de Paris da Gare de l’Est pelas 20h em direcção a Berlim. O espírito era fazer a viagem de noite para ter dois dias, o dia seguinte e mais outro, para visitar a capital da Alemanha.

Uma hora depois de termos partido, começa uma grande tempestade. Tanta, tanta chuva que às tantas o comboio parou. É sábado, e o comboio está parado há mais de uma hora, dizem que caiu uma árvore na linha. O pior é que amanhã, às 7h, vai haver um transbordo em Hannover e com este atraso não sei o que vai acontecer.

A tempestade já passou, o comboio arrancou muito devagar mas passados quinze minutos parou outra vez com árvores e arbustos tombados na berma da linha.

Já é domingo, são 9h15 e ainda estamos no mesmo sítio, no meio da linha e ninguém imagina o que está a acontecer. Ontem, antes de chegarmos a este sítio ainda estivemos parados numa estação (Chalons-en-Champagne), que pelo menos tinha outras condições, casas de banho e refeições. Estamos parados no meio dum monte, as casas de banho do comboio a começarem a ficar entupidas e a comida a escassear.

São 11h30, o comboio andou para trás e estamos outra vez em Chalons-en-Champagne e é quase o caos. As casas de banho do comboio ficaram mesmo entupidas e a fila para a casa de banho da estação é enorme. Esta estação não está preparada para acontecimentos desta natureza. A fila para o bar é interminável. Ainda dei uma volta pela aldeia, mas como é domingo está tudo fechado excepto uma pizzaria. Mas pizza às 11h30 não deve cair bem.

Estão-se a acabar as baterias: do iPad, do iPod, do telemóvel e da segunda bateria da máquina fotográfica. Se esta carruagem tivesse ar condicionado ou pelo menos conseguíssemos abrir as janelas do corredor, além de umas tomadas para carregarmos as tecnologias e WiFi para estarmos em contacto com o mundo, o tempo passava muito melhor. Podíamos, por exemplo, ver no Youtube uns filmes sobre Berlim, já que em vez de dois dias só vamos poder estar um.

No nosso compartimento vai o Javier, que é de Castela e Leão, mas trabalha nos arredores de Paris na restauração e três meninas argentinas, de Buenos Aires, todas ligadas às artes, a Clara, a Mariana e a Fernanda. Se tudo tivesse corrido na normalidade, tínhamos dormido toda a noite e às 8h tínhamos dito adeus uns aos outros. Com estes atrasos, já nos conhecemos um bocado melhor e de certeza que ainda vai haver lugar para a troca de cartões...

O comboio primeiro parou por causa da tempestade e da árvore caída em cima dos cabos eléctricos mas a seguir foi por causa de uma avaria na máquina. Se fosse em Espanha restituíam-nos o dinheiro da viagem, que no nosso caso foram perto de duzentos euros. Aqui em França, ou na Alemanha, não imagino se há direito a reembolso.

Já são 13h30 e nesta altura sentimos que há falta de consideração pelos passageiros. A máquina nova parece que já chegou mas agora não há motorista. O povo continua pacífico e parece que nada acontece. São 14h30, finalmente o comboio está a partir. Já assisti muitas vezes a festejos com palmas nas aterragens dos aviões da Ryanair mas nunca tinha assistido a tantos festejos numa partida de um comboio. Adieu, adieu, Chalons-en-Champagne.

Foram distribuídos por todos os passageiros uns kits de sobrevivência tipo ração de combate mas com nuances aplicadas à situação. Tinha uma garrafa de água, uma pequena latinha com salada de milho e atum; umas tostinhas para serem barradas com uma mousse, muito parecida com a comida do Guizmo (o nosso gato); um concentrado de maçã e uns doces que não cheguei a provar. Mas o mais engraçado é que no fundo da caixa tinha um livrinho com meia dúzia de páginas com sudokus, palavras-cruzadas e outros quebra-cabeças, além de outros entretenimentos mais infantis.

São 15h, o comboio segue rápido a atravessar a Lorena e pela janela sempre que se passa por uma ponte vão surgindo canais por perto. Ouvi dizer que desta vez, em vez de irmos directos para Hannover, vamos para Menheim, onde trocamos de comboio para Berlim.

São 18h e há pouco entrámos na Alemanha. Uns ainda dormem e outros tentam decifrar um impresso para que o valor do bilhete ou parte dele seja devolvido. Curiosamente no fim do tal impresso tem um quadrado referente ao atraso do comboio: mais de 30 minutos; mais 1 hora ou mais de 2 horas. Ainda não se sabe qual vai ser o atraso mas, pelas minhas contas, vão ser mais de 15 horas.

Passámos Kaiserlautern e logo que chegámos a Menheim foi feito o transbordo numa pressinha. Este novo comboio era muito melhor que o anterior mas foi preciso corrermos não sei quantas carruagens para podermos ficar todos juntos. O mais engraçado é que, devido à tal noite louca, estes seis que não se conheciam de lado nenhum (três argentinas, dois portugueses e um espanhol), funcionaram como um grupo, quer à procura de lugares para ficarem todos juntos, quer a ajudarem-se uns aos outros. As complicações e os perigos aproximam mesmo as pessoas…

À uma da manhã, 29 horas depois de partirmos de Paris, acabámos por chegar a Berlim. Uma estação grande e moderna. Fomos logo à procura dos guichets, que estavam fechados, mas estava aberta a Polizei. E foi mesmo lá que nos informaram sobre a possibilidade do tal reembolso devido ao atraso, que foram 16 horas.

Por acaso lembrámo-nos de perguntar qual o melhor caminho para os respectivos hotéis e a mulher-polícia disse-nos que tínhamos direito a táxi de borla. Foi então que sentimos que estávamos num país do primeiríssimo mundo.

Já passa das três da manhã quando me estou a meter no vale dos lençóis.

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