Fugas - dicas dos leitores

Bulent Kilic/AFP

Istambul e eu num romance sem guias

Por Ana Vidal Carvalho

As ruas, os mercados, as ruelas e as avenidas não são muito diferentes da nossa Lisboa, menina e moça. Aliás, a uma certa altura não sabia muito bem onde andava, se na bela Lisboa ou num lugar distantes dos meus sonhos.

Estava confusa com as ruas do Bairro Beyoglu, uma vez que são a fotocópia do nosso Bairro Alto, tanto em barulho nocturno como em local de encontro de várias gerações e de diferentes culturas. Só as vozes que ecoavam nos minaretes a horas certas, as mulheres de lenço na cabeça e o cheiro dos cachimbos de água relembravam-me que estava na cidade antiga de Constantinopla, capital de três antigos impérios, e então abria o coração à magia oriental que ressoava em mim.

Destes dias em que andei bem longe dos guias e mapas turísticos, os mesmos que tornam qualquer cidade objecto de decoração sem ânimo, encontrei uma Istambul que somente esperava ser contemplada com todos os nossos sentidos. Tal aconteceu quando andei perdida nos mercados de especiarias e nos arruamentos estreitos, caí num enfeitiçamento pelas pessoas que fazem de Istambul o cenário perfeito das estórias das mil e uma noites. Fiquei com o corpo e com a alma rendidos a um mundo que para nós está tantas vezes distante.

Só vale a pena viver uma cidade se esta for contemplada de uma forma autêntica — andar de transportes públicos, estar em filas para comprar pão, ajudar uma pessoa ao nosso lado, cheirar as comidas que são confeccionadas na rua, ouvir as palavras dos vendedores que se repetem vezes sem conta na esperança que alguém as ouça, esperar pelo autocarro, entrar no autocarro errado e logo parar para sair na primeira paragem, seguir a linha do eléctrico porque sabemos que nos leva a algum lado, olhar e ver as crianças a brincar, desconhecer em que ruas estamos mas mesmo assim andar com confiança, regatear o preço em português ou em turco ou em outra qualquer língua previamente adaptada, pois tudo vale, a compra é somente um pormenor e regatear uma arte. A isto e muito mais, chamo eu estar na cidade.

Por norma não gosto de viver o que os outros viveram e escreveram, gosto de os ler, admiro-os e confesso que muitas vezes são inspiradores, (claro que Um Crime no Expresso do Oriente estava dentro da mala). Contudo, o detalhe faz a diferença, faz-me essencialmente sentir viva! E sentir-me viva é andar nas artérias da cidade, onde realmente se encontra a cultura, o tradicional, o típico, as gentes e as suas estórias pessoais. Em Istambul é fácil encontrar esses detalhes, pois em todos os cantos, em todas as esquinas, existe uma lembrança do passado, dos impérios, das guerras, dos sultões e de pessoas que por ali passaram deixando cair acidentalmente sonhos e esperanças …

Istambul é, como sabemos a cidade-fronteira. Todavia, tem uma outra particularidade: um sublime e excepcional pôr do sol. Agora que sou eu a escrever, penso que não existem palavras para o decifrar (ou pelo menos, eu não tenho as mais acertadas). É um cor-de-rosa suave, misturado com um azul celeste que se combina numa dança fenomenal para os sentidos. Se pararmos um pouco será fácil ouvir os passos desta dança de cores, ambas movem-se lentamente mergulhando por entre as casas amontoadas que se perdem da vista ao logo do Bósforo, onde sobressaem os minaretes das mesquitas.

Se estivermos na ponte Galata Koprusu, que une as duas margens do Corno do Ouro, então teremos a certeza de como é o paraíso — pelo menos a nível de cores. Tal ponte é o camarote principal deste espectáculo celestial que no final de dia concentra centenas de pescadores que mostram a sua paciência e valentia. Amontoam-se nos lados extremos da ponte, fazem-me lembrar as velhas estórias tradicionais, onde os pescadores são caçadores astutos de tesouros! Ali os tesouros resumem-se a uns peixes minúsculos que quando apanhados ficam a nadar dentro de uns garrafões de água até perderem o fôlego. É no meio deste cenário que o sol sai devagarinho de cena, dando lugar a uma lua gigante …

Do Bósforo muito se escreveu, pobre estreito, possui uma tarefa pesada, tem às suas costas a função ingrata de ser fronteira de dois mundos, que se combina com a herança legada de unificar continentes. O Bósforo não é um estreito calmo, ao contrário dos pomposos rios europeus. O Bósforo guarda revoltas e guerras internas, tem personalidade forte e vincada, sabe de onde vem e para onde vai, tem o destino bem traçado, não se deixando perder entre as centenas de barcos o que tornam uma auto-estrada marítima.

É um rio mistificado por lendas e histórias bizarras. Murat, o primeiro depositário de confiança (couchsurfing), contou-nos que em anos antigos, quando nevava, o Bósforo ficava um autêntico glaciar, onde as pessoas passavam de uma margem à outra a andar. Nessa noite pedi aos “deuses” para nevar… A neve não apareceu, infelizmente…

Apareceu, sim, a oportunidade de assistir a uma oração muçulmana na grande mesquita Nova (junto ao Bósforo do lado europeu). Sem fazer barulho e sem sapatos, com um lenço colorido a cobrir a cabeça, entrei devagarinho para assistir a um ritual indescritivelmente belo. Eu gosto de rituais – especialmente estes, não sei porquê.

Saboreei todos os movimentos dos homens, o passar o polegar pelas orelhas, o levantar, o virar a cabeça para cima, para a direita e para a esquerda, a posição das mãos e os sons que, sem os distinguir, percebi que falavam de amor. Foi o tempo do parar, do estar longe da agitação citadina. Sem perceber uma única palavra do que se dizia, aceitei-as todas elas, tornando-as minhas. Sentada naquele chão de alcatifa azul e vermelho, todos os movimentos entranharam-se em mim e foi então que o espírito da cidade (sim, todas as cidades tem um espírito) me abraçou, dando-me as boas-vindas.

Porque razão fui a Istambul? Porque em tempos sonhei com a fonte, que podem ver na foto! Até que um dia, numa revista de viagens, descobri que a fonte dos sonhos era no palácio Topkapi…

Tanto mais havia por dizer, mas corro o risco de parecer uma guia turística...

--%>