Fugas - dicas dos leitores

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Burning Man

Por Marta Pinto (texto), Gracinda Palha (fotos)

Um lendário e singular festival no deserto do Nevada, nos Estados Unidos. Decorre este ano de 30 de Agosto a 7 de Setembro.

- De onde vens? – perguntam-me.
- Portugal.
- E como vieste aqui parar? Andas a conhecer os Estados Unidos?
- Não. Vim directa e exclusivamente para aqui.
- Wow! You’re crazy, girl!

Abro o livro que levei comigo e mostro as imagens no interior. Fiquei a saber da existência do Burning Man através do livro Estou Nua. E Agora?, de Francisco Salgueiro. Bastou uma rápida pesquisa na Internet para perceber que se tratava de um evento megalómano. Já apelidado de Woodstock dos tempos modernos, o Burning Man é o maior evento artístico do mundo e acontece uma vez por ano em pleno deserto – Black Rock Desert – no estado de Nevada, EUA. Mais do que um evento, o Burning Man é um modo de estar, uma libertação do corpo e da mente. Um misto de emoções dentro do peito difíceis de traduzir em palavras. Uma sensação de liberdade individual e ao mesmo tempo de união humana. Todos os homens num só Homem, representado por uma grande estátua em madeira: The Man.

Conseguir os bilhetes não é tarefa fácil. Há gente de todo mundo a querer participar. Quase 70.000 pessoas reúnem-se todos os anos para assistir à queima do Homem, ritual que dá nome ao evento. Juntamente com o bilhete de entrada vem  um guia de sobrevivência. As regras são muitas e precisas. Para poder participar neste evento é necessário levar consigo provisões para toda a semana. Uma das formas mais originais de participação é estar inserido num Theme Camp, ou seja, acampamentos alusivos aos mais variados temas: pintura, fotografia, escultura, etc.

Chegar ao deserto do Nevada é uma verdadeira aventura. São longas as filas de automóveis e autocaravanas, há quem espere muitas horas para entrar. Finalmente avisto a estátua The Man, que se distingue como marco de presença humana naquele lugar inóspito. À entrada há um ritual de boas vindas aos virgins, aqueles que pela primeira vez chegam à terra encantada.

Alguns membros da organização dão as boas-vindas aos recém-chegados e os estreantes são convidados a rolarem na poeira, sendo como que baptizados, só que em vez de água, com pó! Aágua é racionada e imprescindível para evitar a desidratação. Logo, esqueçam banho e conforto. Substituam tudo isso pela quantidade de dádivas que vão receber das pessoas extraordinárias que vão cruzar o vosso caminho. E quanto à sujidade corporal: toalhitas, levem muitas toalhitas!

A partir dali tudo o que acontece no Burning Man não fica no Burning Man, mas é difícil de partilhar sem ser vivido. Não há necessidade de dinheiro, nem existe qualquer tipo de transação comercial dentro do espaço. A única transação é dar e receber. E a partilha acontece em qualquer momento e em qualquer lugar. “Mas não passaste fome?”, perguntam-me. A resposta é não. Precisamente por causa dessa partilha que surge a todo o instante. Há sempre alguém que te convida para beber ou petiscar durante o teu passeio de bicicleta. E, garanto, logo a seguir a água e comida, a bicicleta é o bem mais essencial para participar neste evento. É o meio de transporte mais utilizado e que permite fazer um efectivo reconhecimento do local. Sem ela dificilmente teria tido tempo suficiente para explorar todo o espaço. Além disso, pode e deve ser enfeitada de forma criativa e tornar-se um meio divertido de participação.

A iluminação é também fundamental. Estamos a falar do deserto, e zonas há onde a escuridão predomina. A forma mais segura e original de ser visto é iluminar-se. Resultado: a “cidade” de Black Rock City brilha à noite com as suas múltiplas atracções.

Na falta de bicicleta, pode-se sempre apanhar uma boleia de um carro alegórico, também chamado de mutant vehicle, entre os vários autorizados a circular no recinto. Espectacularmente decorados, parecem tirados de um conhecido filme. E de repente faço parte do Mad Max!

A mais maravilhosa forma de partilha é a da multiplicidade cultural, a das histórias que cada um traz consigo. E a mais extraordinária forma de pagamento o abraço. Nunca abracei tanta gente em tão curto espaço de tempo!

A seguir a estes momentos fraternos, o acontecimento mais marcante é, definitivamente, a queima das estátuas. Grandes esculturas de madeira espalham-se pelo deserto, a uma distância por vezes considerável (daí a importância da bicicleta), a apelar à descoberta e à introspecção num local tão árido.

“Há duas coisas fundamentais que tens de fazer aqui para que a tua experiência seja vivida ao máximo”, dizem-me. “Uma é ‘perderes-te’ no deserto. E a outra, assistir ao nascer do sol.” Daí que uma visita à Deep Playa (zona mais remota do recinto) seja obrigatória. Uma verdadeira autodescoberta na busca do desconhecido. Mas assistir ao nascer do sol em pleno deserto foi um momento que jamais hei-de esquecer. Aconteceu no dia agendado para a queima da estátua apelidada The Embrace. Uma belíssima escultura de madeira representada por um casal unido por um abraço. Dentro de cada um dos membros do casal há um coração mecânico que pulsa e liberta uma luz vermelha intensa, como o sangue que bombeia e dá vida.

É possível subir por uma estrutura interna até à cabeça, espreitar e ver através dos olhos da estátua a “cidade” nascida no deserto. Mas eis que o sol sob forma de uma enorme bola de fogo desponta no horizonte, por trás do casal idílico. Ao céu tingido de laranja mágico misturam-se as labaredas libertadas da madeira que arde. É o morrer daquele abraço, num novo dia que nasce.

Na penúltima noite todos acorrem à zona central do recinto. É incrível olhar a toda a volta e ver a movimentação de pessoas em direcção ao círculo central, para assistir ao momento mais esperado ao longo de toda a semana: a queima do Homem. Todos os carros alegóricos iluminados e repletos de assistência, como adeptos de bancada, cercam o perímetro. Focos de luz iluminam a enorme estátua, um espectáculo de fogo-de-artifício anuncia o grande momento e eis que as chamas brotam da mítica esfinge. Uma explosão seguida de uma bola de fogo provoca uma exclamação coletiva: “Wow!”. A animação e as palmas ouvem-se por todo o lado.

O encerramento do evento acontece na noite de domingo com a queima da última estátua: The Temple. Esta é das esculturas mais belas e com maior simbolismo construídas em todo o deserto. Em madeira trabalhada, num rendilhado meticuloso, é considerada o local de adoração, culto ou simplesmente de introspecção. Seja qual for a religião ou a crença praticada. Os participantes depositam os mais variados objectos, tais como fotografias, dedicatórias, fitas coloridas, em memória de algum ente querido. Ou deixam simplesmente uma mensagem com desejos futuros. Ao fim da tarde, enquanto o sol se põe atrás das montanhas, alguns casais escolhem este local para celebrarem a sua união e, com sorte, é possível assistir a um casamento.

A queima deste monumento é um acontecimento mágico. Um grande círculo repleto de pessoas, desta vez maioritariamente sentadas, assiste em silêncio ao queimar do edifício sagrado. A emoção toma conta dos corações unidos naquele momento simbólico. De repente, sem ninguém contar (julgo que nem mesmo a organização), acontece o inesperado: um movimento giratório. A torre cai em espiral, como um rodopio que finaliza uma dança, e o edifício colapsa nas areias do deserto. Os olhos da assistência brilham de comoção e até os mais resistentes deixam escapar umas lágrimas. Foi um momento lindíssimo que tive a sorte de viver e compartilhar com pessoas de todo o mundo, unidas por um mesmo sentimento: paz.

“Voltavas?”. Nem hesito. Claro que sim!

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