Fugas - dicas dos leitores

Por terras de Vera Cruz

Por José Alberto Santos

A primeira vez que ouvi a palavra Brasil foi da boca da minha mãe. Tinha para aí cinco ou seis anos. O Brasil foi, muito provavelmente, o primeiro nome que ouvi de um país estrangeiro. A Espanha e a França, por exemplo, por razões familiares e não só, só viriam ao meu glossário anos depois. Dizia-me a minha mãe que tinha uma irmã que foi, num vapor, com os padrinhos para o Brasil quando era muito nova, nos anos 40 do século XX.

Nos anos durante e após a II Grande Guerra Mundial as dificuldades nas aldeias do interior de Portugal eram inenarráveis. Orgulhosamente sós, nesses ermos remotos e isolados, faziam-se filas para o pão e para as rações de comida, que eram dadas através de senhas. A minha mãe e os irmãos andavam com a neve até aos joelhos para arranjaram comida, tal era a escassez e a míngua. Minha mãe foi para Lisboa, servir na casa de uns senhores, como se dizia à época. A minha tia foi para o Brasil. Pelos mesmos motivos. Para fugirem à fome em busca de trabalho e melhores condições de vida que uma aldeia em Granja a Nova, Lamego, na altura não lhes podia dar. 

Apesar de ter mais irmãos, a minha mãe sempre nos fala desta sua irmã que foi para o Brasil. Já lá vão quase, quase, oitenta anos. Nunca mais ninguém soube nada dela. Desde aí, o Brasil, país-continente, sempre encerrou para mim uma aura mística. A primeira actualização de Brasil só viria anos mais tarde, nos anos 70 do seculo XX, graças à Ordem e Progresso do futebol de Pelé e companhia, bem como o Carnaval em Fevereiro, e por arrasto esse tipo de dança de raízes africanas, o samba. Aliás, se há países que se possam identificar pela sonoridade da sua música o Brasil é um deles. 

Em 2003 tive a sorte e a felicidade de poder realizar um dos meus sonhos de infância: ir para e ao Brasil. Sorte de podermos ir. Felicidade por levar comigo a minha esposa, a Ana Maria, e a minha filha Andreia. E, claro, três bons amigos, o Paulo, a Paula e o filho deles, o João. E só então eu aprendi que o Brasil são muitos brasis dentro de um Brasil. 

“Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra a Terra de Vera Cruz” (Carta de Pero Vaz de Caminha, a El-Rei D. Manuel, sobre o achamento do Brasil em 22 de Abril de 1500)

14 de Agosto de 2003. O voo com destino à cidade de Porto Seguro, no estado brasileiro da Bahia tinha hora prevista de partida, do aeroporto lisboeta da Portela, por volta 12h. Tinha, disse bem: saiu às 18h. Quando aterrámos no Aeroporto de Porto Seguro, “ali” na Avenida Brigadeiro Faria Lima, a 2km do centro da cidade, era quase meia-noite, hora local. Declarações de Saúde do Viajante do Ministério Brasileiro da Saúde em dia e entregues com os passaportes. Declaração do Ministério da Fazenda de Bagagem Acompanhada (residente no país) entregue à Policia Federal e ala que se faz tarde para seguirmos caminho. O nosso destino final? A embelezada e multicolorida Vila de Arraial d’Ajuda, que ainda ficava a quase a uma dezena de quilómetros pela frente. E, pior, ainda tínhamos de atravessar um rio, o Buranhém, de “balsa”. Para quem ainda não veio a este Brasil, o rio Buranhém une fluvialmente, deste lado do território e através de uma “balsa”, a cidade de Porto Seguro à vila de Arraial d’Ajuda. 

Depois, carregar as bagagens foi a maior “bagunça”. Impressionante, em busca de um punhado de reais, a quantidade de “moleques” querendo carregar as nossas malas para tudo o quanto era sítio. Claro que Pablo e Andrés, os nossos guias, trataram logo ali de “maneirar” a situação. Pessoas e malas tudo para dentro da “kombi” da Terra Brasil. O que é uma “kombi”? É aquele furgão da Volkswagen tipo “pão-de-forma”. Chegados ao cais de embarque, para pegar a “balsa” para atravessar o rio, nova espera até o funcionário da bilheteira, sei lá, acabar o seu milk shake para nos atender. A travessia do Buranhém em balsa, pequeno ferry típico onde viajam carros, motas, animais, pessoas, vendendo pé-de-moleque, foi das melhores belezas naturais nocturnas que eu vi no Brasil. Atravessar de noite um rio às escuras, só com umas luzinhas pequeninas da balsa, com um céu limpo e estrelado como pano de fundo, ao som do “forró”, foi, digamos, um dos porquês de termos vindo ao Brasil. Ainda nos cruzámos a meio do rio com outra balsa que trazia gente local, animais e, pasme-se!, duas ou três camas de rede onde dormitavam, sei lá, dois “jagunços”? 

Chegados a Arraial d’Ajuda, é tempo de seguirmos viagem até ao local onde ficaremos alojados em terras de Vera Cruz: a Pousada dos Coqueiros, localizada estrategicamente dentro da vila de Arraial d’Ajuda, ali no número 55 da Alameda dos Flamboyants. Muito perto, como mais tarde constataríamos, da famosa rua “Broduei” e a 300 metros da praia. O check-in foi feito rapidamente. O pior foi dona Letícia dizer que já não havia jantar porque já nem contavam connosco a esta hora da noite. Mas tudo se arranja, como dizia o Paulo. A caminho do nosso bungalow-apartamento pudemos constatar o ambiente envolvente da pousada: localizado no meio da Mata Atlântica, em ambiente decorado naturalmente, tranquilo, confortável, em jardins exuberantes e com a tradicional e mundialmente famosa descontração baiana: sorria, você está na Bahia. 

Depois das malas desfeitas, o Paulo lá nos sugere irmos à vila manjar alguma coisa. A fominha é mais que muita. O quê? Uma feijoada à brasileira, pois claro. Então era o quê? Sardinha assada? Pois, foi isso e um peixe frito, tão frito, tão frito que até as espinhas, ressequidas, eu e o Paulo comemos. Tal era a fome. O “pintado” (nome do peixe) foi frito em “óleo de dendê”, dizia o moço que nos atendeu, daí estar “maneiro pá comer”. Era o que havia. A Ana, a Andreia, a Paula e o João viraram-se para o tradicional bife com batatas fritas. Também era o que havia. Pois. Duas cervejas Kaiser de 600ml, bem “geladinhas” depois, e toca de voltar para a pousada. Duas e tal da manhã. Quase um dia sem dormir, na minha idade, só pode dar rabujice. Isso e o maldito forró, que não se calou em toda a noite. Parece até festa de “peão”. Às tantas até parece que dou por mim a adormecer a som de País Tropical de Jorge Ben: “Moro, num país tropical, abençoado por Deus/E bonito por natureza, mas que beleza/Em Fevereiro (em Fevereiro)/Tem Carnaval (tem Carnaval)/Tenho um fusca e um violão/Sou flamengo/Tenho uma nêga/Chamada Tereza”.

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