Fugas - dicas dos leitores

Por terras de Ozymandias

Por Pedro Brás Marques

O Egipto habita na mente de qualquer viajante, até pelas referências constantes na cultura ocidental.

Desde os romances históricos de Christian Jacq, passando pela ficção policial de Agatha Christie, sem esquecer a banda desenhada de Jacobs, Hergé e Jacques Martin mais o tom de comédia de Astérix, até às referências do cinema, com projectos faraónicos como os de Mankiewicz e Cecil B. De Mille, o Egipto sempre esteve comigo. Este ano, entendi que era chegada a altura de o conhecer e de o apresentar à minha família. E foi assim que, no final de Julho, aterrámos no Cairo.

Cidade imensa, onde o pulsar dum trânsito anárquico espelha o ritmo do seu viver, a capital do Egipto pareceria indiferenciada de outras cidades árabes, não se desse o caso de ser herdeira duma história de milénios. As pirâmides de Gizé são uma referência omnipresente e a sua primeira visão, erguendo-se por detrás dum mar de edifícios, é algo que deixa qualquer visitante perfeitamente perplexo. Gigantescas e maciças, como que parecem colocar ordem geométrica no caos urbanístico que as rodeia. Erigidas há bem mais de quatro milénios, a palavra que me surge, agora, para as caracterizar é “absurdo”. O esforço a que obrigou a sua construção, a desmedida dimensão e o ineficaz propósito funerário, tornam-nas quase incompreensíveis.

Mas o Cairo não é só Gizé. É imprescindível conhecer o Museu Egípcio, o gigantesco “armazém” onde está amontoado um fabuloso tesouro arqueológico, situado mesmo ao lado da praça Tahir, a “Praça da Libertação”, palco famoso de várias revoltas políticas. Como em qualquer país muçulmano, a religião é omnipresente. Há templos semeados pela cidade, todos vigiados, desde o alto da Cidadela, pela enorme Mesquita de Alabastro ou de Muhammad Ali. Sobra, ainda, espaço para os templos dos cristãos cooptas respirarem e para a vasta necrópole onde vive mais de um milhão de pessoas, a “Cidade dos Mortos”. Jan El Jalili é o mais interessante mercado do Cairo, com o habitual labirinto colorido e barulhento de ruas em que tudo se vende e onde se poderá saborear um acer asab, o delicioso sumo da cana do açúcar.

Já fora da cidade, é imperdível a visita ao complexo de Sakkara, onde estão semeadas várias pirâmides de diferentes formas e feitios, entre elas a de Djoser, ou “dos degraus”. Pudemos entrar numa outra, a de Teti, onde descemos até ao sarcófago e apreciámos a intrincada mas descolorida ornamentação da câmara funerária. Mas o Egipto é muito mais do que Gizé e arredores, pelo que era chegado o momento de rumar para Sul.

Voámos até Assuão, onde nos hospedámos num confortável barco de cruzeiro. A visita a uma povoação núbia foi aproveitada para um divertido passeio de camelo e para um mergulho num Nilo surpreendentemente frio. Regresso ao barco porque, às três da manhã, teríamos de fazer trezentos quilómetros ainda mais para Sul, de autocarro, pelo deserto, até Abu Simbel. E valeu a pena porque os templos são magníficos na sua majestade exterior e na sua beleza pictórica e cromática interior. De volta, desde Assuão até Luxor o barco foi deslizando, parando em Kom-Ombo e Edfu, dois complexos religiosos fantásticos, onde os rostos dos deuses egípcios foram destruídos, a martelo e cinzel, por fanáticos religiosos. Cristãos, desta vez.  Ou como se mudam as peças mas as regras do xadrez se mantêm…

Luxor foi a última etapa. Do lado direito do Nilo e da antiga Tebas ergue-se o mais fantástico templo de todo o Egipto: Karnak. Gigantesco. Esmagador. Só a sala hipostila, formada por uma floresta de 134 maciças colunas com mais de vinte metros de altura e quase cinco de diâmetro cada uma, vale a visita. Depois há obeliscos e estátuas em quantidade e grandiosidade suficientes para deixar estupefacto qualquer visitante. Perto, fica o templo de Luxor, mais pequeno, mas igualmente interessante, até pela fotogénica Avenida das Esfinges que lhe serve de acesso.

Na margem oposta, a atenção divide-se entre o imperial templo da rainha Hatsepshut, a primeira mulher-faraó, imenso e clara fonte de inspiração para algumas das construções desmedidas feitas por certos regimes totalitários do século XX, e o Vale dos Reis, repouso final de dezenas de faraós e de altos dignitários. Apenas meia-dúzia de túmulos podem ser visitados, sendo que alguns mergulham quase duzentos metros pela montanha adentro. Curiosamente, o mais famoso de todos, o de Tutankamon, é dos mais pequenos. Mas é também o que mais mexe com o imaginário dos visitantes, pelo que se tem de pagar bilhete extra para lá entrar. Mas vale a pena, porque além de belíssimo, estão lá o sarcófago e a múmia do faraó. Sempre me fascinou o relato da sua descoberta por Howard Carter, pelo que queria tirar todo o partido da visita. Lá encontrei meio de “influenciar” o guarda e consegui a lembrança fotográfica que tanto almejava. Do ponto de vista estritamente pessoal, esta curta visita de dez minutos valeu toda a viagem.

O Egipto actual está turisticamente vazio. Não há filas para aceder a museus e monumentos. Em vários locais, estivemos completamente sozinhos durante toda a visita. Os comerciantes chegaram a pedir-nos comida. Nas margens do Nilo, apodrecem barcos de cruzeiro às dezenas. Por isso, não deixou de ser simbolicamente irónico que a última vista fosse do templo de Ramsesses, onde se encontra a cabeça gigante tombada de Ramsés II e que serviu de inspiração a Shelley para o poema Ozymandias (“Ramsés” em grego), sobre a efemeridade da existência, onde se conta que um viajante encontrou uma estátua dum faraó em que estava escrito “O meu nome é Ozymandias, rei dos reis, vede as minhas obras e a sua grandeza e chorai!”. Mas a estátua estava tombada e partida, e tudo o que a rodeava estava em ruínas… Uma metáfora da qual o Egipto tem necessidade urgente de sair. 

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