Fugas - dicas dos leitores

Pedro Mota Curto

Pyramiden, a cidade-fantasma

Por Pedro Mota Curto

O rosto de Lenine impressiona. O busto de Lenine, imponente e carismático, não deixa ninguém indiferente. O seu olhar dirigido para a ampla avenida impera e impõe-se perante os caminhos, as ruas e as casas vazias.

Este Lenine de mármore, nostálgico, domina toda a paisagem, pois está estrategicamente colocado no topo da avenida que, do alto, desce até ao gélido mar. No meio, um relvado já um pouco seco e descuidado, entre vários blocos de apartamentos, com dois ou quatro andares, de ar sólido e resistente, mas vazios, sem ninguém, entregues aos pássaros e à sua linguagem estridente e incompreensível, apesar de frenética. Seres alados que instalaram os seus ninhos naquelas janelas esquecidas e abandonadas. Tantas janelas e tão simétricas. Arquitectura soviética, sem sombra de dúvida. Quanto a Lenine, lá continua, impávido e sereno. A tudo assiste, imperturbável, mas convicto, 92 anos após a sua prematura morte.

O barco partira de Longyearbyen, capital do arquipélago de Svalbard, situado 640 quilómetros a norte do Cabo Norte, a ponta mais setentrional da Noruega. Apesar de ser Verão, este mês de Agosto não dispensava a roupa de neve. O ar do mar e o vento arrefeciam ainda mais a frágil e breve estação quente destas vastas ilhas quase desertas, situadas a cerca de 1300 quilómetros do Pólo Norte.

Nesta época, a noite era uma entidade não existente. O dia durava vinte e quatro horas. A viagem de barco iria durar cerca de duas horas, sempre para norte. Paisagens surrealistas de cumes nevados, neves eternas, glaciares imóveis, numa sinfonia de azuis de várias tonalidades. Ao longe, um urso polar fixava o seu olhar destemido no nosso pequeno navio. Por vezes, repuxos de baleias, camufladas em gigantescas massas de água, escuras e frias. Desta vez as morsas não se encontravam nas praias da zona. As raposas do Árctico eram demasiado pequenas e furtivas para se deixarem observar. Apenas os pássaros, por vezes, faziam a sua fugaz aparição, planando junto ao navio e junto à água. A natureza no seu estado, puro, selvagem, virgem de seres humanos, isenta, desprovida de humanidade. Este arquipélago de Svalbard não é território para humanos.

Demasiado inóspito, demasiado distante, demasiado frio. Três meses de noite polar, no Inverno, sempre de noite, sempre escuro, com temperaturas de quase cinquenta graus negativos, não é sítio para a humanidade se aventurar. Não se vislumbra uma árvore nem um arbusto sequer. Apenas montanhas carecas e profundos vales irreais. Paisagens com milhões de anos, intocadas, esculpidas pela erosão e pelas tempestades — 60% destas ilhas estão há milhares de anos cobertas por glaciares não familiarizados com o homem.

Finalmente uma enseada, junto ao mar, sem neve, com um pequeno porto de madeira, com fortes sinais de abandono, madeira gasta e marcada por muitos Invernos rigorosos. Uma enorme grua enferrujada, restos de maquinaria carcomida e vencida pelo frio, pela neve e pelo gelo. Perto do porto, um edifício que parece ter sido uma central elétrica a carvão, abandonado, com ar deteriorado, derrotado, mas orgulhosamente hirto.

Logo a seguir, o início de uma alta e curiosa montanha, desprovida de qualquer vegetação, com neve no topo. Esta montanha tem a forma de uma pirâmide. Não se vê ninguém, não se ouve nada, é a solidão absoluta. O Pólo Norte a pouco mais de 1000km. O Alasca e a Sibéria pertencem a outras latitudes, muito mais meridionais, muito mais a sul. Aqui, a 78 graus de latitude Norte, só a ponta mais a norte da Gronelândia faz alguma concorrência.

De súbito, vislumbra-se um homem no cais, marchando de um lado para o outro, sem parar. Parece estar a marchar. A sua imagem vai aumentando. Tem uma espingarda a tiracolo e um gorro com ar soviético. Um sobretudo preto e comprido, gola vermelha, estrela vermelha. Parece um soldado russo, sozinho a defender o antigo império. Não se vê mais ninguém. E ele a marchar, a marchar, orgulhoso, altivo, ciente da sua missão. O barco atraca, encosta ao cais apodrecido, a madeira que range, os poucos passageiros espantados e mudos com semelhante visão.

À sua frente estava uma das cidades-fantasma mais famosas de todo o mundo. Uma cidade russa em território norueguês. Uma antiga cidade mineira que já fora habitada por doze mil pessoas, na sua maioria mineiros ucranianos. Minas de carvão que penetravam pelas profundezas negras das encostas daquela montanha ocre, com forma de pirâmide. Tudo abandonado, tudo deserto. A natureza agreste, gelada, a recuperar o que era seu desde há milhões de anos. Em 2016 viviam neste local, nesta cidade, apenas oito russos, oito guardiães de um império desaparecido.

Pyramiden é uma cidade fantasma mas simultaneamente também é uma cidade espectáculo, no seu silêncio, nas suas paisagens deslumbrantes, no seu abandono. Uma insignificante pegada humana num cenário intocado durante milhões de anos. Uma utopia leninista no mundo real de um planeta que não cessa de nos deslumbrar.

 

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