Fugas - dicas dos leitores

Marco Ramos

Trinidad, o luto nacional e o fim do bloqueio

Por Marco Ramos

Trinidad é uma pérola. Basta estar no centro da Plaza Mayor, rodeado de palácios centenários bem preservados e de cores eternas, vivas e alegres, para o perceber.

A arquitectura colonial confere um charme inebriante a este lugar, que os trinitários se encarregam de honrar com uma elegância e bom gosto nas suas casas, restaurantes e lojas. Tudo junto faz de Trinidad uma pérola de glamour caribenho. É compreensível que seja Património da Humanidade...

Subindo à torre do Palácio Cantero, actual Museo de Historia Municipal, pode ver-se melhor a praça colonial, alfa e ómega de todo este encanto gracioso. Subindo um pouco o olhar, vê-se a serrania de Topes de Collantes, com as suas belas cascatas (que não visitámos), e rodando o olhar para a direita imagina-se o Valle de Los Ingenios, com a sua história esclavagista da apanha da cana-de-açúcar (que também não visitámos). Continuando a rodar o olhar para a direita, detemo-nos no mar das Caraíbas, a uns escassos 10 quilómetros do centro de Trinidad.

Visitámos a surpreendentemente bela e exclusiva (de minúscula) praia de Maria Aguilar mas acabámos por nos banhar de sol e de mar (sem escolhos, por causa dos miúdos) na praia de Ancón, uma tira em meia-lua aberta de translúcidos azuis-turquesa e branco farináceo, orlada por frondosas árvores (coqueiros? mangueiras?). Uma praia com uma grande extensão (sete quilómetros, salvo erro) mas com muitos “recantos” paradisíacos. Nós tivemos a sorte de “ancorar” no mais paradisíaco de todos, o “coração da praia de Ancón”, de acordo com o “guarda” da praia que nos deu as boas vindas. Trinidad é também uma pérola geográfica.

Em Havana e na viagem para Trinidad haviam-nos recomendado para não perder a Casa da Música. Essa seria outra razão para dizer desta cidade que é uma pérola de cultura, não apenas histórica e arquitectónica, mas também musical. Infelizmente, não só não a pudemos visitar, como sobretudo não pudemos ouvir nem dançar do melhor son cubano. O luto nacional pela morte de Fidel Castro assim o impôs. Nove dias com proibição de venda de bebidas alcoólicas (que haveríamos de compensar convenientemente dois dias depois, num resort turístico) e de música. O que a princípio prometia ser uma provação — nem ron nem son — acabou por se transformar numa experiência incomum, porém marcante. O silêncio e a acalmia das ruas e das praças criou um ambiente de recolhimento que abriu todo o espaço interior para a fruição do deslumbramento com Trinidad. Foi como se o belo “soasse” mais belo, como que alcançando maior eco dentro de nós.

Outro eco marcante foi a simpatia dos trinitários, mais genuína e menos interesseira que a dos habaneros. Este contraste apaziguou-nos com os cubanos, e fez de Trinidad, para nós, e mais uma vez, uma pérola de simpatia. Trata-se de uma simpatia tão natural e afável que a chegamos a sentir como amizade. Poderá ser exagerado dizer que ficámos amigos do casal de (ex) médicos onde nos alojámos, dr. Alexis e dra. Lisdey, do Osvaldo, seu filho adolescente ou do Irisbel, o taxista que nos levou até Cayo Santa Maria. Mas ficámos ligados (tão ligados que os miúdos querem cá voltar…). E, nas longas conversas com eles, compreendemos Cuba melhor, na sua amargura e na sua doçura.

A principal amargura é o não se dever pensar pela própria cabeça, o não se poder falar com os outros sobre o que livremente se pensa, sob pena de se ser denunciado como contra-revolucionário. É uma opressão violenta, uma das muitas contrariedades com que lidam os cubanos, estoicamente, por vezes sem stress, quase sempre com doçura. Não é só a cana-de-açúcar, o clima benfazejo, a beleza natural e cultural, a simpatia das pessoas: até na linguagem os cubanos são doces. Ouvimos inúmeras vezes tratarem-se, mesmo sem se conhecer, por hermano, primo, amigo, mi corazón, mi amor, mi belleza...

Respeito, afecto, elogio constantes. Parece um éden social. Sê-lo-ia também politicamente, se não fosse o bloqueio norte-americano? Grande parte das dificuldades do país resultam da impossibilidade de adquirir matérias-primas e produtos no vizinho mais próximo, a apenas 170km. E do facto de este vizinho não deixar que outros países façam compras em Cuba (por exemplo, carros com níquel cubano — um dos melhores do mundo — não se podem vender nos EUA). Pensei na possibilidade utópica de um paradigma novo nascido na América Latina de que vem falando Boaventura Sousa Santos e outros articulistas do Rebélion. Pensei em como isso ameaçaria o paradigma dominante (totalitário?) do vizinho de cima… Que eficaz, este bloqueio!

E os cubanos estão conscientes de que os novos ventos políticos não lhes serão de feição. O novo presidente norte-americano não é um estadista. Será incapaz de ser ele o feitor da promessa velada de Obama, desse acto grandioso de justiça civilizacional que seria acabar com o bloqueio. Mas os cubanos continuarão a ser doces, a sua terra continuará a ser doce. Sin apuro. E com muito aprumo.

 

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