Fugas - dicas dos leitores

Ainda de mochila às costas no Vietname

Por Patrícia Caeiros

A viagem de Halong Bay até Sapa são horas em autocarros que fazem curvas apertadas em precipícios sem protecção lateral.

Chegamos às três da manhã, mas aguardamos no seu interior. Desligam o ar condicionado. O calor faz-se notar e eu encosto o corpo ao vidro da janela para arrefecer.

Os minutos arrastam-se pelo relógio. Quando amanhece, há mulheres em trajes típicos do lado de fora. Saímos. Somos três. Há cinco que nos rodeiam e perguntam-nos se queremos ficar na casa delas. Dizem, escolhemos-vos através da janela. Não temos hostel marcado, por isso interrogamos o preço e onde fica a casa. Dizem-nos, no meio dos arrozais e a minha casa é a maior da aldeia.

Aceitamos. A Mao, que entretanto se apresentou e que é a única que fala inglês, liga para o marido e outros homens, que nos levam de mota até à aldeia. Quando chegamos, a casa, afinal, é pobre. O sótão, onde vamos dormir, tem quase tanto espaço como o resto da habitação, mas enquanto nós temos um colchão para cada um, existem três para o resto da família que é o triplo de nós. Há uma lâmpada na sala, onde existe também um telemóvel que está sempre a carregar, e que é usado pelos miúdos para jogarem jogos à vez.

Na cozinha, é o lume no chão com uma panela em cima que aclara a divisão. Há electricidade às vezes. Há uma casa de banho lá fora: tem uma porcelana achatada com um buraco e um tupperware que serve de autoclismo, e que são três paredes e uma quarta que é um plástico corrido cobrindo a entrada, mas que tem que estar afastado para se ver alguma coisa lá dentro. Atrás, a vista é bonita: são montanhas de arrozais.

Pousamos as mochilas. Há uma menina e uma avó a cozinharem-nos o pequeno-almoço. Acerco-me da cozinha e estendem-me uma panqueca tirada da frigideira. Sabe deliciosamente. Entendemo-nos por palavras em línguas diferentes e por gestos e expressões que têm muitos sorrisos e alguma vergonha. Acabo por chamar Mama à Mama, porque ela aponta alternadamente para si e diz Mama e para nós e diz Pepi. Massaja a barriga e leva a mão à boca numa mensagem para comermos o que quisermos. Diz outras coisas com a boca e com os braços e ri-se, e nós, rimo-nos também. Depois, há um gesto que diz, vão dar uma volta e regressem só para almoçar. E assim fazemos.

A menina faz de guia de trekking e mostra-nos quilómetros de arrozais. Falo com ela, mas pouco nos entendemos. Diz-me o nome, Sao. Tem 15 anos, está grávida de 7 meses e está a aprender inglês com a Mao. Antes de sairmos, a Mama tinha-nos atado à cabeça os lenços daquela terra, e por cada casa por onde agora passamos as mulheres ficam a olhar-nos, e há até quem diga com as mãos que o meu é muito bonito.

As nuvens estão baixas, mas nem assim a paisagem deixa de ser deslumbrante. Avista-se gente de costas dobradas no meio dos arrozais. Às vezes, são crianças. Há outros pequenos pelo caminho que surgem com pulseiras na mão e que dizem “buy for me”, “two for five”, “five for ten”. Eles têm aquela lengalenga decorada e esticam os braços e a voz repete uma e outra vez aquelas palavras. Depois, há uma ponte que parece instável e uma cascata maior que tenho que inclinar a cabeça bem para trás para vê-la em condições. Caminhamos quilómetros, muitos, antes de voltarmos à casa e a um almoço tardio.

Depois, com a chuva lá fora, brincamos com os meninos numa apanhada em círculos ou às escondidas em esconderijos pequenos. Dizemos os nomes deles e eles gritam um riso que nos faz rir. As horas passam e chega mais gente da família que se senta à espera. Depois, dizem para jantarmos. Enchem-nos de novo os pratos e eu noto a dinâmica familiar e as tigelas que chegam à boca cheias de arroz e que são devoradas a uma velocidade indescritível. A Mao conversa connosco e pergunta-nos coisas. Vai traduzindo para a família e às vezes surgem gargalhadas em coro que não entendemos.

As horas arrastam-se e há quem tenha que ir a pé para casa pelas ruas sem luz, por isso, eles dão o dia por encerrado. Lavamos os dentes na cozinha num barril que tem água que vem do campo, e dizemos boa noite. Os miúdos estão empilhados nas camas e há alguns já de olhos fechados. Passo por eles e penso no pouco que têm, mas nos risos que são fáceis. Subo as escadas. Deito-me. Entalo a mosquiteira. Faz-se silêncio, e, enquanto há sons que existem lá fora, penso, estou aqui numa aldeia no meio do nada, deitada num colchão no sótão de uma família que não conheço, que é pobre, mas que nos abriu os braços numa simpatia que ultrapassa a barreira da língua.

Quando no dia seguinte seguimos caminho, a Mama agarra-se numa despedida com beijos e palavras que não entendo, mas traduzem-mas e dizem-me que serei sempre bem-vinda a esta casa. Que ela gosta muito de mim. Isto fica tão colado na memória que depois pouco fixo as ruas que Sapa em si tem para oferecer. É que a experiência do dia anterior e aquela família ficaram agarradas ao corpo numa certeza de que não é preciso muito para ser feliz, e de ainda muito menos para se dar.

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