Fugas - Viagens

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«Alcatrão»: Quando me deram força nas canetas

Por Luís Brito

Um capítulo do livro "Alcatrão", de Luís Brito, que colige crónicas de viagens pelo mundo. Aqui, em Urla, Izmir, Turquia central, "a 3110,6 km de casa".

Viagem por um «Alcatrão» a negro com traços brancos de esperança


Viajantes. Aqueles com quem partilhamos a perspectiva externa, as pessoas que, por também virem de fora, se tornam na nossa família por afinal morarmos no mesmo sítio: longe.

O grupo que guarda um cartão de visita na pergunta where are you from? o grupo inquirindo para onde se vai de seguida, por onde já se passou e o que se faz em casa para pagar os passeios que se entrecruzam. O grupo que comunga conversa e atenção bilingue ou, por outras palavras, diplomacia sem segundas intenções.

Pelo mundo fora, fui conhecendo muitos outros nómadas, pessoas fantásticas e realidades profundamente inspiradoras, por vezes tão interessantes como as realidades em que me banhei. Introduzo agora mais duas personagens, Enrique e Mercedes. Nascidos há mais de trinta anos em Espanha, eles têm hoje uma vida em muito fora do comum; uma Vida talvez absolutamente louca, ou uma Vida talvez completamente sã. Enquanto pedalava avistei-os ao fundo, montados nas suas bicicletas. Pareceram-me ter muito mais equipamento do que eu; pus força nas canetas e aproximei-me. Vi-lhes os suportes alumínicos prolongados no quadro. Reparei nas bússolas, nos coletes reflectores e nos plásticos protegendo tendas e panelas. Abordei-os, visitei-os diplomaticamente, perguntando where are you from? e fiquei a saber que iam a caminho da China, tendo partido de Valência um par de meses antes.

Estimavam demorar sensivelmente um ano, o mesmo tempo que em 2008 gastaram desde Cádis até à África do Sul. Há quem visite países diletantemente, como eu,e depois há quem atravesse continentes, de cama e cozinha às costas, em modo extrema-poupança e vivendo aventuras livres, assim totalmente livres como elas devem ser.

Enrique e eu somos mais rápidos do que a sua namorada. Mas não necessariamente mais fortes, uma vez que a força de alguém reside só no confronto com e na aceitação de as suas próprias fraquezas. Ganhos já uns quilómetros de distância, decidimos esperar por ela num miradouro improvisado, mirando com as miras esfomeadas os caprichos visuais de mais um vale, vendo mais à medida que mais vamos olhando e comungando palavras de admiração:

— A Cedes é tão brava. Havias de ver quando apanhámos uma ventania desgraçada, uma tempestade de areia nos desertos do Quénia. Ela voou da bicicleta, caiu no meio do chão, montou outra vez, a rir desalmadamente e com os cotovelos e os joelhos em sangue! Se soubesses como ela me motiva e inspira… juro-te que era completamente incapaz de fazer isto sem o meu amor!

Mais resistente do que qualquer carro alemão, Mercedes volta a alcançar-nos e rearrancamos de imediato. Digo aos dois que assim ela não tem tempo para descansar. Ela responde não precisar de repousar como nós, porque vai sempre devagar e com mucho orgulho. Novamente pedalando, pus-me a pensar na força feminina, a força calma de Mercedes, sempre em mudanças baixas, pedalando muito, mas quase sem esforço. Ainda pedalando, pus-me a pensar se ao fim do dia lhe doíam as pernas e as costas tanto como a mim, porque sou homem, para sempre um bárbaro incapaz de não andar o mais depressa possível e em desrespeito dos meus cuidados ergonómicos. Pus-me a pensar em todas as minhas articulações, trabalhadas ao selim enquanto articulo ideias e prazeres de passeio, e também nas articulações dela, articuladas em castelhano, seguramente resistentes e sólidas como um motor alemão, tratadas com cuidado e aquecidas antes do esforço e alongadas antes do descanso.

Continuámos por umas horas. Íamos ofegando entre gargalhadas, comentando as mulas e as casas abandonadas, os cultivos e os tapetes, toda a solidão do alcatrão, e nisto tive direito à descida mais agradável da minha vida. À entrada de Urla, curvávamos por entre montanhas de moinhos, a temperatura do ar estava perfeita e, ao fundo, um grande lago verde-lima dava-nos as boas-vindas a mais uma cidade. Quando parámos para almoçar, admiti-lhes nunca me ter divertido tanto dando aos pedais. Eles olharam um para o outro, enternecendo-se como se eu fosse um filho aprendendo a pedalar, e tanto carinho espontâneo fez-me admitir não saber o que perco por não fazer isto mais vezes.

Comemos kebab, carne grelhada aos pedaços com tomate picado, salsa e queijo de cabra. Bebemos ayane, um sorvete típico feito de iogurte com agua e sal, néctar refrescante que na Turquia rima com viciante. Rearrancámos, pedalámos a subir e Mercedes voltou a ficar para trás.

Mais uma paragem, desta feita numa bomba de gasolina. Aguardando a chegada dela, comprámos uma barrinha energética, a conselho nutritivo e experiente de Enrique. Quando vamos re-retornar à pista, alguém vem lá de dentro e convida-nos para tomar um chá. Abancamos e oiço Enrique, desta feita em palavras filosóficas:

— De facto, há qualquer coisa nisto das bicicletas que parece atrair o melhor das pessoas. Não sei se é por solidariedade, se é pela nossa atitude humilde, se é pelo caricato da situação ou até por uma subconsciência ecológica... mas as gentes são sempre tão simpáticas quando passamos por elas! Tratam-nos de uma forma especial, parece que sem pensarem nisso apoiam a nossa iniciativa e olha... isso sempre me deu forças para seguir e ir inspirando as gentes enquanto passamos.

Tirei os olhos de Enrique para observar as redondezas. Olhar muito para ver mais ainda. Os rapazes da bomba estavam fascinados com o nosso espírito aventureiro, e um deles, ganhando coragem, ofereceu-nos duas canetas da marca gasolineira: dois pequenos pedaços de plástico encarnado, ninharias que, por valerem tão pouco ali, ganharam um valor simbólico incalculável. Falando mais com o meu Enrique, chegámos a outra conclusão semifilosófica. É que a bicicleta tem mais uma vantagem, que poderá parecer irrisória mas é preponderante para uma jornada bem passada. A bicicleta pára facilmente e quando algo nos capta a atenção não custa travar, não nos desculpamos com o “é tarde de mais” e, acima de tudo, a nossa velocidade média é perfeita para apreciar panoramas e pormenores em tranquilidade essencial, como um cruzeiro em contemplação fluida e entregue à preguiça do tempo.

Viajar é realmente isto. Perceber que o valor do tempo está precisamente em não lhe dar valor nenhum. Ignorar a pressa e os planos, mandar arder relógios e calendários, relaxar e aproveitar os pequenos nadas, como a oferta de uma caneta plastificada com um logótipo qualquer. Viajar verdadeiramente é darmo-nos ao alcatrão e às correntes, sabendo que a viagem tem para nós preparado precisamente o que mais queremos viver. Viajar bem, paradoxalmente, é movermo-nos pouco.

Continuamos sentados no pátio da bomba. A Cedes já se juntou a nós, os três chás tornaram-se em seis e obviamente lá veio mais uma caneta para ela. No meio daquela estrada deserta, naquela recta monocromática onde não se deverá passar quase nada durante a maior parte das estações, nasceu então uma festa multicultural, improvisada e inesperada como são as melhores festanças de todas. Rimos muito, falámos sem perceber do que falávamos, dançámos músicas ciganas, usámos o Google Translate para trocar ideias e comemos frutos secos. Dançámos mais músicas ciganas, brincámos com o fogo e acendemos cigarros, tirámos fotografias e prometemos ser amigos para sempre.

A dada altura, algures entre mais um perfeito desentendimento, “eles” perguntam-“nos” por quantos países já tínhamos passado. Enumerámos as nossas listas, eu falei da Europa, de Marrocos, do Maláui, da Zâmbia, da Suazilândia, da Tailândia, do Camboja, do Laos, de Singapura e de outros sítios que vi antes de começar a escrever. Do lado de lá, do lado dos estagnados, um momento que eu senti morto. Do de lá, do lado que vejo, a minha suspeita da inveja, um talvez complexo de inferioridade fundido na vontade de bem receber.

Survivor’s guilt: a depressão consumada pelo único sobrevivente de um acidente rodoviário. “O remorso do rico”: a dor que me mastiga quando olho para outra pessoa e formalizo a sorte que tenho em viver a minha Vida, em oposição à sorte dele, meu irmão humano com tanto direito à felicidade como outro irmão qualquer. É estranho, mas de alguma maneira estes conceitos interligam-se e, ao viajar e conhecer, ao olhar e olhar para não parar de ver, por vezes sou absorvido pela acidez da impotência. Quem sou eu para ter sobrevivido à lotaria que antecedeu o meu nascimento? Que real direito tenho aos privilégios de conhecer o mundo? Por que raio posso enumerar os continentes que já pisei, os oceanos em que nadei e as montanhas que pensei escalar? Porque é que nasci com tanta fortuna, uma fortuna obscena, se a enquadrarmos numa escala global?

Pensar assim poderá parecer inútil. Tais apreciações poderão ser até hipócritas deambulações, dilemas de quem tem horário para se dar ao luxo das inquietudes existenciais, mas são-me de facto impressões incontroláveis e indissociáveis do confronto com a realidade. Acontece quando contraceno com a rapariga que trabalha arduamente, mas recebe o que por pouco lhe basta para comprar comida. Acontece quando conheço pessoas da minha idade que nunca viram o mar, ou o céu através da janelinha de um avião. Acontece quando o que a mim parece barato é a outros inacessível. Pode acontecer em qualquer lado, mesmo à porta da minha casa, em Lisboa ou no Ribatejo. Porém, em viagem ganhamos um estatuto especial: somos novidade, distracção e escape à rotina. Um ar fresco que entra nas vidas de quem, mesmo não estando à nossa espera, nos recebe com toda a alma. E esse pequeno poder, o poder de sermos nós mesmos num lugar diferente, traz uma grande responsabilidade.

Então, o que é que faço? Então, o que fazemos? Somos agradáveis, o mais agradáveis que conseguirmos, tão simpáticos como podemos, porque simpatia é quase amor. O que fazemos? Congratulamos sem parar o sabor das castanhas oferecidas, demonstramos interesse por tudo quanto nos circunda, investimos na representação, fazemo-nos actores de músicas ciganas e pomos quem está connosco a sentir-se verdadeiramente especial. Viajar é assim. Aprender a viver, porque viver bem é viver para os outros.

O que faço? O que fazemos? Encontramos lugares familiares, sentimentos universais, como o desprezo pela autoridade, e fazemos pouco dos polícias que passam ao fundo. O que faço? O que fazemos? Rebuscamos outros sentimentos universais, como a preguiça, e brincamos com o gasolineiro georgiano quando ele abastece, pachorrento, o único carro que pára ali no espaço de uma hora e meia. O que faço? O que somos? Somos palhaços se for preciso e oferecemos gargalhadas, bailamos como crianças, alinhando em tudo quanto nos sugerem. O que fazemos? Fazemos groundation: metemos todos ao mesmo nível, ao nível do ground, o nível do chão, o chão que somos, porque de lá viemos e para lá vamos.

O que somos? Somos kanka, naquele caso irmãos-machos e insatisfeitos, juntos no inferno que é a eterna cobiça. Kanka e irmãos unidos na submissão à sensualidade, refugiados na atracção funesta pelo que nunca se poderá ter, ou seja irmãos automáticos vendo modelos na Internet e a babarmo-nos até ficarmos sem cuspo. Falando sobre mulheres e sobre sentimentos universais. Falando sobre sexo, sobre o desejo e sobre a criação de tudo quanto pisa o chão.

E assim se passaram duas horas, regadas com o cheiro fumegante do gasóleo e das castanhas quase queimadas. Ok, Mercedes, vamos embora. Está quase a ficar de noite, e obrigado por esperares com tanta paciência. Realmente, tu sabes viver. Foi bom enquanto durou, é sempre bom quando é duro, e lá vamos nós para a estrada outra vez.

Antes de me re-sentar no selim, presenteio o gasolineiro georgiano com uma nota da Malásia, nada mais do que um pedaço de papel, perdido na minha mochila. Ele abraça-me com tanta paixão que até me fere os ossos e então apetece-me dar-lhe todas as coisas em que alguma vez toquei.

Os viajantes-ciclistas, de tanto pedalarem, conhecerem e voltarem a partir, de tanto se dedicarem às correntes e às mudanças, já se terão habituado à carga dramática que oscila sempre em momentos de separação. Vendo a minha comoção e a comoção de quem vai voltar à monotonia, eles defendem-se com um pouco de sarcasmo:

— Luís... não vais chorar, pois não??

Não. Claro que não. Ainda agora me oferendaram uma caneta. E ela escreve com a força de mil homens.

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