Viagem por um «Alcatrão» a negro com traços brancos de esperança
Viajantes. Aqueles com quem partilhamos a perspectiva externa, as pessoas que, por também virem de fora, se tornam na nossa família por afinal morarmos no mesmo sítio: longe.
O grupo que guarda um cartão de visita na pergunta where are you from? o grupo inquirindo para onde se vai de seguida, por onde já se passou e o que se faz em casa para pagar os passeios que se entrecruzam. O grupo que comunga conversa e atenção bilingue ou, por outras palavras, diplomacia sem segundas intenções.
Pelo mundo fora, fui conhecendo muitos outros nómadas, pessoas fantásticas e realidades profundamente inspiradoras, por vezes tão interessantes como as realidades em que me banhei. Introduzo agora mais duas personagens, Enrique e Mercedes. Nascidos há mais de trinta anos em Espanha, eles têm hoje uma vida em muito fora do comum; uma Vida talvez absolutamente louca, ou uma Vida talvez completamente sã. Enquanto pedalava avistei-os ao fundo, montados nas suas bicicletas. Pareceram-me ter muito mais equipamento do que eu; pus força nas canetas e aproximei-me. Vi-lhes os suportes alumínicos prolongados no quadro. Reparei nas bússolas, nos coletes reflectores e nos plásticos protegendo tendas e panelas. Abordei-os, visitei-os diplomaticamente, perguntando where are you from? e fiquei a saber que iam a caminho da China, tendo partido de Valência um par de meses antes.
Estimavam demorar sensivelmente um ano, o mesmo tempo que em 2008 gastaram desde Cádis até à África do Sul. Há quem visite países diletantemente, como eu,e depois há quem atravesse continentes, de cama e cozinha às costas, em modo extrema-poupança e vivendo aventuras livres, assim totalmente livres como elas devem ser.
Enrique e eu somos mais rápidos do que a sua namorada. Mas não necessariamente mais fortes, uma vez que a força de alguém reside só no confronto com e na aceitação de as suas próprias fraquezas. Ganhos já uns quilómetros de distância, decidimos esperar por ela num miradouro improvisado, mirando com as miras esfomeadas os caprichos visuais de mais um vale, vendo mais à medida que mais vamos olhando e comungando palavras de admiração:
— A Cedes é tão brava. Havias de ver quando apanhámos uma ventania desgraçada, uma tempestade de areia nos desertos do Quénia. Ela voou da bicicleta, caiu no meio do chão, montou outra vez, a rir desalmadamente e com os cotovelos e os joelhos em sangue! Se soubesses como ela me motiva e inspira… juro-te que era completamente incapaz de fazer isto sem o meu amor!
Mais resistente do que qualquer carro alemão, Mercedes volta a alcançar-nos e rearrancamos de imediato. Digo aos dois que assim ela não tem tempo para descansar. Ela responde não precisar de repousar como nós, porque vai sempre devagar e com mucho orgulho. Novamente pedalando, pus-me a pensar na força feminina, a força calma de Mercedes, sempre em mudanças baixas, pedalando muito, mas quase sem esforço. Ainda pedalando, pus-me a pensar se ao fim do dia lhe doíam as pernas e as costas tanto como a mim, porque sou homem, para sempre um bárbaro incapaz de não andar o mais depressa possível e em desrespeito dos meus cuidados ergonómicos. Pus-me a pensar em todas as minhas articulações, trabalhadas ao selim enquanto articulo ideias e prazeres de passeio, e também nas articulações dela, articuladas em castelhano, seguramente resistentes e sólidas como um motor alemão, tratadas com cuidado e aquecidas antes do esforço e alongadas antes do descanso.