[leia um excerto do "Alcatrão": Quando me deram força nas canetas]
“Reparo logo em como as minhas ruas, as ruas a que posso chamar minhas, estão cheias de automóveis caros. Venho com medo das crises, económicas e existenciais, de que tanto tenho ouvido falar, mesmo estando longe. Lembro-me de porque é que parti. Quis resolver as minhas crises existenciais, a minha insatisfação profissional e afastar-me dos meus problemas familiares. Provavelmente resolvi viajar por precisar de me sentir vivo. Ou, pelo menos, mais vivo. Penso que aqueles carros bons podiam ser limpos por mim, em semáforos e a troco de moedas, como fiz no Chile durante tempos vivos. Tão vivos que alguns lhes chamariam loucos.”
Dois anos podem mudar muito a vida de uma pessoa, “ainda mais se é lá fora, sozinho”. Para Luís Brito, de 27 anos, mudou “tudo”, como se quer. Afinal, “se a viagem não nos muda, não é viagem”, defende. “Tentei, em tudo o que via, absorver uma lição interior e procurei pessoas que parecessem saber, que tivessem coisas para me ensinar”.
Em Moçambique conheceu os rituais de iniciação macua através de Eufrásio e as feitiçarias dos curandeiros com Arivava. Na Índia, Xavier confessou-lhe que o importante é ir andando e não necessariamente chegar, Cesar mostrou-lhe que há que viver ao máximo com o que se tem. No Chile, Che e Ojito provaram que são fortuitas as linhas que separam a causalidade da casualidade. Histórias, 30 no total, que compõem agora “Alcatrão”, o seu primeiro livro, lançado a 7 de Dezembro.
“São momentos que fui vivendo e que achei que valiam a pena partilhar”, conta o copy writer à Fugas, enquanto vai esvaziando o interior do bolso num banco do Largo de Camões, à procura de moedas para a mulher que nos observa de mão estendida. No livro, Luís Brito relata novos episódios a cada crónica, revelando as diferentes pessoas com quem os partilhou e sobretudo as ilações que foi tirando de cada situação. “A viagem é também uma viagem pelo meu pensamento”, explica. “São as conclusões que tiro por causa do que se passou antes comigo, um cruzamento entre o que encontro e aquilo que sou”.
Os temas que aborda são maioritariamente negros - “o gajo que está perdido e amputado, as coisas que se fazem aos animais, a pobreza” - mas Luís diz ter “a capacidade de sempre ver aí alguma coisa mais luminosa”. O nome da obra editada pela Abysmo surgiu, por isso, não apenas numa analogia com a estrada, mas também com o próprio fenómeno do alcatrão: escuro, mas capaz de ficar transparente quando o sol lhe bate, ondulando o calor. O livro “é um alcatrão negro com traços brancos de esperança”, remata.
“Quando viajo verdadeiramente, quando desbravo por desbravar e me entrego ao acaso, tenho episódios de êxtase, dando-me a sensações que são amostras de divino, qualquer coisa como o sabor da eternidade embutido na fugacidade de um momento.”
Depois de quatro anos “a trabalhar e a poupar todo o dinheiro que tinha”, Luís Brito embarcou numa viagem de partidas, escolhidas pelo interesse que lhe suscitavam e pela vontade de ter um livro diversificado. Passar os episódios mais marcantes a papel sempre foi o objectivo último da viagem, a maneira como se justificou a si próprio “estar tanto tempo fora, longe da família”. Mas Luís queria também passar a mensagem, levar outros a viajar sozinhos como ele. “A intensidade de viajar é uma coisa que me toca tanto que acho que tenho de partilhar isto”, conta.
Primeiro partiu para a Ilha de Moçambique, onde teve uma ONG com amigos. Depois voltou a surfar na Indonésia, onde anos antes tinha nascido a paixão pela viagem: “Pela primeira vez estava noutro continente e lembro-me de estar fascinado, de repente vi este espectáculo que é a vida real lá fora e o bicho mordeu-me”. De seguida, passou dois meses a pedalar a Turquia, sugestão de dois espanhóis que conheceu em Moçambique. Na Índia comprou uma mota antiga e desceu parte do país durante três meses. Terminou o percurso depois de oito meses na Argentina e no Chile.
Pelo caminho, viu wrestling de camelos, viajou num comboio superpovoado, bebeu chá de coração de cobra, lavou vidros de carros no semáforo quando o dinheiro estava a acabar. Mas Luís não quer nomear nenhum episódio, nenhuma pessoa com quem os partilhou. Era excluir amigos, escolher entre experiências que ainda não assimilou totalmente. Prefere antes destacar o facto de tantas pessoas lhe terem aberto a porta de casa. “Deixaram-me lá ficar uma semana, duas semanas, às vezes meses, em troca de nada ou de trabalho manual ou companhia e [a partir disso tive a possibilidade de] conhecer a família deles, os amigos da família, entrar na rotina deles”, descreve.
Enquanto não regressa solitário à estrada - “sozinho é uma viagem, acompanhado é um passeio”, defende -, Luís Brito prepara um segundo livro e pensa em novas partidas. Gostava de regressar à Índia e à Argentina, sonha com Cuba desde sempre e ficou com vontade de ir à Colômbia pelo que os amigos colombianos lhe contaram sobre o país e, até confessa, “pelas mulheres, que dizem serem muito bonitas”. Mas o futuro próximo será mesmo “a observar esta nova viagem que é quando as pessoas vão ler o meu livro e ver a reacção delas”. "Não faço ideia de como vai ser, tal como estando a viajar não se sabe como é o dia a seguir”.
“Viajar requer tempo, muito tempo, quanto mais tempo, melhor – para absorver as lições mais simples e importantes. Arrisco-me a dizer que, mais do que gostar, amo viajar. E o amor só o é quando demora.”
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O livro
"Alcatrão" de Luís Brito
edição Abysmo
224 págs., 14 x 20 cm
Preço de capa: 16€
Facebook: luisbritoalcatrao