Fugas - Viagens

  • Adriano Miranda
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Da gaveta das memórias de sais de prata

Os dias vão passando. Chegamos a Yaroslavl. A União Soviética continua presente. O guia é lento e pausado. Cansado também. Fala imenso dos comunistas. Não se percebe se com saudades ou com raiva. Foi tradutor nos sovietes, agora recebe turistas. Mas na Rússia, convertida em capitalista, o comunismo está em todo o lado. Nos edifícios, nas exposições, nos pedestais, nas bandeiras, na política, na história e na cabeça de cada russo.

No grande jardim, Lenine continua de dedo apontado no meio das bétulas. Cá em baixo a professora aposentada canta a troco de uns rublos, o velho operário vende mapas e um sem-abrigo carrega uns sacos negros. É a sobrevivência, e o antigo tradutor arrasta as pernas. Sobrevive. Agora, Lenine é só pedra.

A Rússia tem destas coisas. Tanto se pode admirar um cosmonauta como uma casa feudal. No segundo maior lago da Europa existe um palmo de terra que dá pelo nome de Kizhi. Uma ilha feudal que tinha padres, senhores e servos. Diz a guia que a revolução bolchevique acabou com os senhores. Depreendo também que acabou com os servos. A ilha soviética transformou-se em museu.

Entro na casa do senhor abastado. Está lá tudo. As botas, os pratos, as alfaias, o berço, o santo. E o samovar. Toco-lhe. Sei que ali estão histórias. Por toda a Rússia milhões de samovares contam a grande história. Imagino proletários ao som da kalinca a festejar a revolução, reuniões clandestinas a conspirar, namorados a amar, Gagarin a voar e a União a desmoronar. Uns a rir e outros a chorar. Todos sentem o sabor do chá amargo ou doce. O chá é de todos. Não existe melhor democracia que o chá de um samovar. Com e sem utopias.

E é ao sabor de um chá que chego a São Petersburgo. Da outra vez tinha chegado a Leninegrado. Mudam-se os tempos, mudam-se os nomes. Vi ao longe a cúpula amarela da catedral. O Hotel Astória era em frente. Era e é. Entrei e tudo permanece igual. A recepção, a sala de refeições, o elevador. Mudam-se os tempos e os clientes também. Agora é um dos hotéis mais caros da Rússia só para clientes “especiais”. Mas eu também fui um cliente especial.

Foi no Astória que descobri as almofadas de penas e os edredons. Dormi dos meus melhores sonos e tive os melhores sonhos. Foi no Astória que comi as melhores bolas de gelado com compota de morango. Foi no Astória que comecei a despertar para as pernas da recepcionista. O Astória foi especial.

Agora o Astória é memória. Mesmo que eu fosse um “especial” não voltaria a pernoitar no Astória. Há coisas que não se devem estragar.

E foi no jardim em frente que aprendi que Leninegrado foi uma cidade heróica. Cercada, humilhada e nunca vergada. Hitler tinha planos para fazer a festa da ocupação no Hotel Astória. Milhões estragaram-lhe o gosto.

Era criança e juntei mil escudos. Como transpirei para ter na mão aquela nota. Depois de lhe sentir o cheiro, dobrei-a em quatro e fui comprar a minha primeira máquina fotográfica. Uma Kodak com um nome sugestivo, Baratinha.

Fui até ao país em que não se podia fotografar, em que existia um polícia para cada turista, em que o comer não abundava e se comia pão escuro. Dizia-se. Ouvia-se. Eu arrisquei e a Baratinha foi comigo. Em terra tão estranha descobri tantas coisas boas. Não dei descanso à Baratinha, mais rolos houvesse. Fotografei, fotografei. Enquadramentos toscos de quem queria mostrar como era do outro lado. Apenas isso. E já era tanto.

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