Fugas - Viagens

  • Adriano Miranda
  • Adriano Miranda
  • Adriano Miranda

Multimedia

Mais

Ver mais

Relacionados

Da gaveta das memórias de sais de prata

Por Adriano Miranda

Há 35 anos, o repórter fotográfico Adriano Miranda viajou com os avós para a então URSS. Voltou à Rússia agora. Encontrou muitas diferenças, mas o essencial está na mesma: é que há sempre algo que nos une. Como o sabor amargo ou doce do chá de um samovar.

Veja o trabalho multimédia: Regresso à Rússia, 35 anos depois 

O meu avô chamava-me Comandante. Durante muito tempo julguei ser militar. Depois percebi que era um tributo a Guevara. Em Abril, comemorei os meus 15 anos. Em Julho, o meu avô decidiu viajar até à União Soviética.

A revista Vida Soviética tinha presença obrigatória na casa do meu avô. De tanto a ler, decidiu ver a vida ao vivo. Convidou-me para ir com ele. O Comandante aceitou. Tirei o meu primeiro passaporte, comprei roupa nova, fiz a mala. Disse adeus ao meu pai, beijei a minha mãe. O coração saltava.

O avião era enorme. Branco e azul. Da Aeroflot. A minha avó transpirava de medo. O meu avô estava feliz. Eu só acreditei quando senti a velocidade do avião a correr na pista rumo ao céu. Estava nas nuvens.

Passaram 35 anos e volto ao país que entretanto mudou de nome e encolheu. Chego a Moscovo pelas três da manhã. Atordoado, entro no hotel e ouço falar português. Pergunto se são portugueses e a resposta é afirmativa. O mundo é uma ervilha, digo eu. Ansioso, deito-me com vontade de me levantar. O meu lugar não é ali, naquele quarto. O meu lugar é nas ruas e nas praças. Por onde andei há 35 anos?

Andei de metro, de escadas rolantes gigantes, visitei museus, adorei igrejas, aplaudi bailado. Vi gente mergulhada em livros. Admirei homens e mulheres a jogarem xadrez nos jardins, comi gelados e bebi sumos. Vi crianças a patinar. Mulheres a conduzir autocarros. Continuei a ler a Vida Soviética até ela acabar. Quis o destino que agora voltasse para ver a vida russa. Olhei para um jarro com sumo de cereja. Bebi um, dois, três copos. Revivi a vida soviética. O sabor é o mesmo. Igualzinho! Afinal, as cerejas são vermelhas!

A minha avó caiu nas frenéticas e vertiginosas escadas do metro de Moscovo. Nunca tinha andado em semelhante coisa. O meu avô gritou. E o povo não reagiu. Agora que voltei a descer ao museu-estação, as escadas são as mesmas, made in USSR. Já velhas mas a cumprir a sua função. Sentado junto a uma estátua de um futebolista de bom porte, recordei o meu avô e a minha avó. Ela, sempre com medo de se perder em tão grande cidade. Ele, encantado porque estava onde o sol nascia. Certamente não se importaria de se perder.

Continuo a olhar para as pessoas. Elas também olham para mim. Já não é estranho como noutros tempos. Eu já viajei muito. Eles se calhar também. Usamos os mesmo telemóveis, as mesmas marcas de ténis, as mesmas gangas, os mesmos cortes de cabelo, comemos as mesmas bananas, lemos os mesmos livros, vemos os mesmos filmes. Curioso, continuamos a gostar de cravos vermelhos. Estão por toda a parte. Nos canteiros e nos regaços.

Já não consigo descobrir onde foi. As avenida continuam grandes. A diferença é que estão entupidas. Foi numa larga avenida moscovita que ia sendo atropelado por um ZIL. Era um jovem ateu e gritei “Ai minha Nossa Senhora!”. Agora que sou um velho ateu, continuo convicto de que não morri em terra vermelha devido exclusivamente à perícia do condutor.

Moscovo mudou tanto que agora só poderei ser atropelado por um Rolls-Royce. Mas não arrisco. Não acredito nada na perícia deste novo condutor.

--%>