Não se sabe ao certo quando começou a vinha e o vinho no Alentejo. Mas há vestígios históricos que demonstram que já existiam plantas de Vitis Vinifera quando os romanos entraram por estas bandas. Foram eles, aliás, que trouxeram novas técnicas agrícolas e a ampliaram a tradição da fermentação dos mostos em talhas de barro. Desde esses tempos remotos que a história dos vinhos no Alentejo tem passado por altos e baixos.
Florescente em pleno século XVI, com grande prestígio dos vinhos de Évora, aos vinhos de Peramanca, bem como aos brancos de Beja e aos palhetes do Alvito, Viana e Vila de Frades. O sucesso deu origem à desgraça quando, por iniciativa do Marquês de Pombal, os viticultores alentejanos foram obrigados a arrancar muitos hectares de vinha, como justificação para a defesa dos vinhos do Douro. Só em meados do século XIX o Alentejo conseguiu recomeçar paulatinamente na senda do vinho. E quando estava a criar novo sucesso, a filoxera deitou tudo a perder. As crises sociais, politicas e económicas que se seguiram, incluindo as duas grandes guerras mundiais, lançaram novamente a viticultura alentejana no declínio. Finalmente, a campanha cerealífera deu a estocada final. O Alentejo seria "o celeiro de Portugal". A história está descrita no site da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana e o escritor diz-nos que "em poucos anos o vinho no Alentejo, salvo raras excepções, desapareceu enquanto empreendimento empresarial".
O renascimento só ocorreu no final da década de 40, com a Junta Nacional do Vinho, poderoso organismo do estado português. Mas ainda de forma pouco resoluta. A criação das primeiras adegas cooperativas há cerca de 50 anos deu o impulso final à viticultura da região. Diz ainda a história que "em 1988 regulamentaram-se as primeiras denominações de origem alentejanas, fundamento para o estabelecimento, em 1989, da CVRA (Comissão Vitivinícola Regional Alentejana), garante da certificação e regulamentação dos vinhos do Alentejo".
A era moderna do Alentejo
No entanto, por esta altura o numero de produtores era exiguo e a quantidade de marcas uma palida amostra do que e hoje. Em meados da decada de 90, com o aumento no consumo de vinho de qualidade e por forca do crescente prestigio dos vinhos alentejanos, o mercado das uvas no Alentejo literalmente explodiu. A procura crescia, a oferta nao acompanhava e os precos subiam em flecha. Era normal um quilo de uvas chegar ao euro (ou mais), um valor que assegurava uma excelente rentabilidade ao viticultor. O Alentejo começou então a ser considerado como a galinha dos ovos de ouro da vitivinicultura.
Um fenómeno aconteceu então: outrora muito restritiva ao aumento de vinha, a legislação passou a permitir transferir direitos de plantação de outras regiões para o Alentejo. Ao mesmo tempo, um programa europeu específico chamado Vitis dava substanciais ajudas à plantação de vinha.
Estava aberto o caminho para dois tipos de investidores: os agricultores tradicionais, que viram na vinha uma alternativa à progressiva decadência dos cereais e do gado; e muitos investidores de fora, a maioria oriundos de outros ramos da economia, começaram a investir em vinhas, vinho e marcas. Alguns números para se verificar esta tendência: em 1997, a área de vinha no Alentejo era de 13.500 hectares; hoje ronda os 22.000 hectares. A média de produção de vinho no triénio 96-98 foi de 42,5 milhões de litros; o valor da média de 2007-2010 é de 87,3 milhões de litros, mais do dobro! Em 2010 o Alentejo superou pela primeira vez a barreira dos 100 milhões de litros de vinho produzido.
Em contrapartida, uma parte do conjunto de novos produtores de vinho focou-se na produção de vinhos de alta qualidade. Eles foram, em boa medida, responsáveis pelo notável aumento da qualidade média dos vinhos alentejanos. E pela ampliação do prestígio da região como produtora de vinhos. Digamos que o Alentejo entrava na sua era moderna. Ao mesmo tempo, os avanços na viticultura e enologia foram também substanciais. Na viticultura foram introduzidas outras castas ao longo deste período de renovação, com melhor valor enológico e provavelmente mais adaptadas ao calor do Alentejo. Ou seja, mais regulares na qualidade produzida. As tradicionais Trincadeira, Aragonês, Castelão, Moreto, Roupeiro, Perrum (entre outras) foram sendo substituídas ou acompanhadas por Touriga Nacional, Syrah, Alicante Bouschet, nas tintas, e por Antão Vaz e Arinto, nas brancas. Hoje há produtores a fazer incursões em castas estranhas ao Alentejo, como a branca Alvarinho ou as tintas Petit Verdot ou Touriga Franca.
O mercado dos vinhos alentejanos é enorme. Em 2010, o Alentejo possuía uma quota de mercado superior a 38% em volume e quase 43% em valor. Ou seja, os vinhos alentejanos são tendencialmente vendidos mais caros que em outras regiões, em especial nas lojas e grandes superfícies; aqui, o preço médio do vinho alentejano só perde para os vinhos do Douro, onde a produção tem que ser mais cara, pela difícil morfologia do terreno. No meio de tudo isto estão os produtores de vinho. Alguns com pergaminhos desde há largos anos, outros que entraram no mercado recentemente. Para esta edição da Fugas fomos visitar dois que exemplificam esta dicotomia do novo e velho Alentejo.
Herdade das Servas
Uma questão de família
Luís Mira é a face mais visível da Herdade das Servas, um dos projectos que o Alentejo viu nascer nos últimos anos. Não era propriamente novo nas andanças do vinho. A família já possuía vinhas há duas gerações, na região de Estremoz e Borba. "Toda a minha vida foi passada em contacto com o vinho. O meu bisavô materno foi o fundador e primeiro presidente da Adega Cooperativa de Borba. O meu avô paterno tinha uma firma de vinhos, que passou para o meu pai. Pela sequência lógica das coisas, nós seguimos esta tendência", refere Luís Mira. Não espanta que a empresa possua hoje vinhas com mais de 40 anos.
A tradição continuou com sangue novo, num projecto fresco e de raiz, em 1998. A primeira colheita, da marca Monte das Servas, só nasceu com a vindima de 2000. O primeiro Herdade das Servas viu a luz pouco tempo depois. Dez anos depois são vários milhões de garrafas que entraram no mercado nacional e estrangeiro.
Mesmo na era moderna do Alentejo, este pode ser considerado um projecto recente. Primeiro as vinhas novas, plantadas junto à EN4, perto de Estremoz. Depois a adega, no seio da vinha, planeada de raiz para a máxima funcionalidade. Não houve grandes poupanças aqui: equipamentos de topo, cobertura com painéis especiais que mantêm a frescura na adega e um espaço generoso para uma fresca cave de barricas semi-enterrada, com controlo de humidade. Não falta sequer uma caprichada sala de provas com loja de vinhos. Tudo construído com algum requinte, embora sem luxos ostentatórios.
A adega já foi ampliada depois da primeira construção, até porque no ano passado vinificaram-se aqui quase 1,5 milhões de quilos de uva. A grande maioria veio dos 200 hectares de vinha da família mas há também uma parte das uvas que é adquirida a viticultores da região.
Uma jovem equipa controla esta estrutura: aos comandos da viticultura está Carlos, irmão de Luís, e na enologia está Tiago Garcia, desde o início no projecto. O conhecido enólogo Luís Duarte ainda deu uma mãozinha na fase inicial mas desde há 3 anos a responsabilidade dos vinhos é totalmente de Tiago Garcia e de Luís Mira, que juntou a habilidade da gestão à da ajuda na realização dos lotes finais a serem engarrafados.
A família Serrano Mira não pára. Neste momento estão já a fazer reestruturações na vinha, introduzindo castas como o Verdelho, Arinto e Alvarinho, e algumas castas tintas menos comuns, como o Vinhão, Sangiovese, Petit Verdot ou Alfrocheiro.
Herdade Monte da Ribeira
Um clássico que se renova
Marmelar é uma povoação com pouca notoriedade, situada a meio caminho entre Évora e Beja, mais virada para o lado de Espanha. É logo ao pé que está instalada a exploração da Herdade do Monte da Ribeira, pertença da Fundação Carmona e Costa. Uma generosa área a rondar os 1.000 hectares de terra, em terrenos acidentados, pouco comuns no Alentejo. Vítor Carmona e Costa, o patriarca da família e industrial de renome, foi o iniciador do projecto vinícola em 1992, quando o Alentejo se preparava para entrar na sua fase mais moderna. Nesta altura o empresário contratou o técnico Carlos Ramos (irmão do conhecido enólogo e produtor João Portugal Ramos) para planear uma adega que vinificasse as uvas da vinha que tinha plantado nos finais dos anos 80. Ao todo eram 43 hectares de plantas, onde a maioria era ocupada pelas castas tintas Castelão, Moreto, Trincadeira e Aragonês, e nas brancas, Roupeiro.
Mas, verdade seja dita, houve o bom senso (na altura quase revolucionário) de incluir algumas outras castas como a tinta Cabernet Sauvignon e as brancas Antão Vaz (muito comum na vizinha Vidigueira), Arinto e mesmo um pouco de Riesling. Outra novidade: toda a vinha tinha rega gota-a-gota, tecnologia rara na região nesses tempos (corriqueira agora).
A produção (na altura chamava-se CADE) começou com as marcas Pousio e Quatro Caminhos, que rapidamente granjearam reconhecimento no mercado. Nos anos seguintes alguns dos vinhos conseguiam prémios muito encorajadores, como a Talha de Ouro no concurso da Confraria dos Enófilos do Alentejo.
Mas o projecto foi, ao longo dos anos, perdendo algum do ímpeto inicial, com tímidas reestruturações na vinha e adega. Até ao falecimento do proprietário, em 2009. E foram os seus herdeiros que decidiram relançar o projecto, contratando o portuense António Nora para a gestão.
Sobejamente conhecido nos meandros do vinho, em especial pela gestão das lojas Vinho & Coisas (em Matosinhos) e depois na Wine o'Clock, António Nora sabe bem o perfil do consumidor de vinho de qualidade. E as transformações começaram: desde logo pela reestruturação de parte da vinha, com novas castas a entrarem (incluindo Baga e Petit Syrah, inéditas na nesta região). O Castelão e o Moreto, por exemplo, já desapareceram. E depois na adega, que vai levar grandes melhorias no interior e exterior. E finalmente na enologia, com a contratação de Luís Duarte como enólogo consultor, que irá trabalhar com o técnico residente, Nuno Elias. Ao todo, a Fundação irá investir ali 1,2 milhões de euros.
Os vinhos estão também a mudar de perfil e de imagem. Do clássico alentejano está-se a passar para um estilo mais moderno, mais concentrado e com mais fruta. As marcas Varal, Pousio e Quatro Caminhos continuam mas o design foi totalmente remodelado e harmonizado, a começar com os tintos de 2009 e os brancos de 2010. E o portefólio aumentou com a marca Marmelar, o novo topo de gama, que inclui um branco e um tinto.
A pequena equipa que gere o projecto está motivada e confiante. Finalmente o clássico está a mexer-se, a inovar. "E porque não?", pergunta António Nora? "Esta é uma altura de renovação".