Fugas - Vinhos

O vinho Lunar do produtor esloveno Movia

O vinho Lunar do produtor esloveno Movia

Laranja, a nova cor do vinho

Por Rui Falcão

Se sempre pensou que os vinhos teriam de ser brancos, rosados ou tintos, saiba que também existem os vinhos alaranjados. Infelizmente, nenhum deles é alentejano

Não, a cor laranja não tem nada a ver com qualquer tendência política influenciada pelos resultados das recentes eleições. Na hora de escolher um vinho, independentemente das inclinações políticas pessoais, a primeira variável a ter de ser negociada é a cor do vinho, entre branco, tinto ou, para os mais afoitos, rosado, as tonalidades de vinho de sempre. Mas, e que tal se às cores tradicionais do vinho se juntasse agora uma coloração pouco habitual, os vinhos de matiz alaranjada? Os vinhos alaranjados representam um estilo muito particular dentro do capítulo dos vinhos brancos, exibindo um carácter, filosofia e pigmentação que os situam numa classe à parte. São vinhos que significam uma forma de reinterpretação da imagem de pureza do passado, desenhados segundo uma visão do vinho que se manifesta simultaneamente moderna e classicista, rejuvenescendo e adoptando algumas das técnicas empregues no passado.

Porque, convém não o esquecer, durante milhares de anos, antes que as práticas rotineiras da enologia moderna tivessem nascido, os vinhos brancos apresentavam-se num estilo substancialmente diferente da actualidade, sem a fruta e limpidez de aromas que a maioria dos brancos correntes de hoje beneficia... mas também sem o grau de artificialidade e de falta de carácter que corroem tantos dos vinhos brancos de hoje. Até há bem poucos anos os vinhos brancos estavam dispensados do actual regime férreo das fermentações a baixas temperaturas, sujeitos a ambientes oxidativos em lugar do ambiente redutor a que são constrangidos no presente, submetidos a macerações prolongadas com as películas, isentos das filtrações e restantes suavizações a que os vinhos brancos contemporâneos são subordinados.

Nos vinhos alaranjados a palavra mágica é mesmo o termo maceração, o período de tempo em que as cascas das uvas, as películas, são deixadas em contacto directo com o mosto e o vinho feito. Na larguíssima maioria dos vinhos brancos as macerações são quase inexistentes, ou, quando se proporciona tal contacto, raramente ultrapassam os períodos de poucas horas, raramente se aproximando das 24 horas de contacto. No caso dos vinhos alaranjados, a promiscuidade entre uvas e películas pode estender-se por dias, semanas, ou, nos casos mais extremos, por vários meses de amiganço.

Ora sabendo-se que são as películas das uvas a conter a pigmentação, bem como os taninos, isso implica que os vinhos elaborados com recurso a estas macerações prolongadas resultam mais escuros que os vinhos brancos "normais", com os laivos alaranjados ou apetrolados que os caracterizam. Significa igualmente que a textura do vinho será substancialmente diferente dos brancos clássicos, muito mais cheia e pungente, mais gorda e substancial, mais taninosa e austera, sem as finuras e diplomacias que a maioria dos vinhos brancos estampa.

São muitas vezes descritos como sendo vinhos oxidados, apesar de a afirmação raramente ser acertada. São, sim, elaborados num estilo oxidativo, o que, apesar das semelhanças semânticas, está longe de ser o mesmo.

Para que tal afirmação se tenha instituído concorre o facto de se apresentarem sempre em cores muito fortes, algures entre o amarelo ouro intenso, a cor de laranja pura e os tons ambarinos, o que condicionará a maioria dos enófilos a rejeitá-los de imediato, ainda antes de lhes ser dada qualquer oportunidade para mostrar os seus predicados.

São vinhos de nicho, sim, mas o seu séquito de apaixonados, tanto do lado da produção como do lado do consumo, continua a crescer a olhos vistos. Na maioria dos casos são vendidos a preços elevados, por vezes muito elevados, tendo muitos deles sido promovidos ao estatuto de vinhos de culto.

Exemplos flagrantes são os vinhos de Josko Gravner, os Movia de Ales Kristancic, os vinhos loucos de Stanislao Radikon, todos na zona fronteiriça entre a Itália e a Eslovénia, e os exóticos e alienados vinhos de Frank Cornelissen, na Sicília, entre muitos outros que já ascenderam ao estatuto de estrelas maiores do firmamento.

Rejeição às cubas de inox

Em comum a todos a opção por uma agricultura ajustada aos preceitos da biodinâmica e a opção por formas de elaboração e envelhecimento pouco habituais, entre os quais se situam uma rejeição congénita aos depósitos de inox. Em substituição as eleições variam entre os tonéis de madeira avinhada, de diferentes tamanhos e diferentes madeiras, e, sobretudo, o recurso a ânforas de barro, às talhas de barro que já são uns velhos conhecidos do nosso Alentejo. Por vezes as práticas enológicas chegam a extremos quase insensatos, como no caso do vinho branco Lunar do produtor Movia, um branco fermentado em enormes talhas de barro onde, depois de os cachos terem sido despejados directamente nas ânforas sem serem prensados, a talha é tapada... e é só esperar que a gravidade e o peso das uvas façam o seu trabalho, paulatinamente esmagando os bagos. Dois a três anos depois, quase sem realizar qualquer operação, o vinho que escorreu pelo fundo da talha, resultado da fermentação natural, estará pronto para ser engarrafado. Trabalha-se sem rede, sem tecnologia, só com o coração.

Não há controlo de temperatura, não há barricas novas, não há carvalho francês ou americano, não se filtra, não se estabiliza, não se clarifica. Mais natural e primitivo é difícil. Parece ser uma receita segura para o desastre... mas, inesperadamente, o vinho é absolutamente notável! Demasiado radical? Demasiado excêntrico? Assumo que não são vinhos fáceis, mas, apesar da generosa dose de loucura, são vinhos rigorosos, seguros e repletos de carácter. O que sim, entristece, é pensar que o Alentejo poderia, e deveria, ser a verdadeira pátria deste estilo de vinhos, dos quais nunca se apartou ao longo de mais de dois mil anos de história ininterrupta... e que hoje quase todos se entretêm a abandonar e desprezar, desdenhando um dos vinhos mais emblemáticos de Portugal, o vinho de talha.

Porque não tenhamos ilusões, se para italianos, franceses, alemães, eslovenos ou californianos os vinhos de talha são uma novidade com pouco mais de duas décadas, um regresso aos ensinamentos e à pureza do passado, para o Alentejo eles não são mais que a sua condição natural, segundo as práticas que foram aqui introduzidas há mais de dois mil anos durante a ocupação romana. Abraçando a nossa sina crónica, iremos nós, mais uma vez, abandonar o que nos é natural, com vergonha do nosso passado, sem perceber que é essa diferença que nos singulariza num mundo cheio de lugares comuns? Quando é que alguém no Alentejo irá perceber a relevância e o potencial dos vinhos de talha, investindo na sua feitura?

--%>