Fugas - Vinhos

Herdade Vale da Rosa, Ferreira do Alentejo |

Herdade Vale da Rosa, Ferreira do Alentejo | Ricardo Silva

Uvas em versão croché

Por Luís Maio

Cultivam uvas com e sem grainhas, deitam fora toneladas de fruta boa para comer, mas conseguem exportar e prolongar as vindimas por quase meio ano. Fomos a Ferreira do Alentejo testemunhar um caso raro de agricultura portuguesa de sucesso no século XXI.

"Foram vistas caixas da nossa fruta a decorar lojas de roupa em Luanda. Que bonito! Temos de acreditar, para que Portugal se possa tornar numa importante região de produção de alimentos da Europa. Vocês, com a vossa força de trabalho, estão a ajudar o nosso país e o nosso país vai vencer graças a esta união de todos nós".

Não, não se trata de uma redução ao absurdo, ou de uma maquinação de gosto duvidoso. Estas palavras invulgares, quase insólitas sobretudo no actual contexto de crise e descrédito da produção agrícola nacional serviram de remate a uma comunicação aos trabalhadores, recentemente rubricada pelo comendador António Silvestre Ferreira, proprietário da herdade Vale da Rosa, em Ferreira do Alentejo.

A comunicação a que a Fugas assistiu serviu de prelúdio a um almoço volante oferecido no início de Junho a nada menos de 500 trabalhadores, recrutados para a campanha de colheita de uva deste ano. Na assistência havia gente de procedência tão diversa quanto a Ucrânia e a Tailândia, mas a maior parte eram alentejanos, que nesta herdade vão encontrando o sustento que, de resto, vai escasseandoem quase todo o país.

O discurso inusitadamente nacionalista e militante do comendador certifica-o como um genuíno optimista e uma segura excepção num país que se habituou a ver no espelho uma causa perdida. Dele são também as próximas palavras: "Temos a grande vantagem de a nossa fruta ser, regra geral, mais saborosa que a estrangeira. Temos é de fazer fruta de modo profissional sem manchas, sem grandes diferenças de calibre. Mas se formos profissionais o nosso produto é preferido, porque as propriedades organolépticas da nossa fruta são superlativas".

António Silvestre poderá ser um idealista, mas não é seguramente um lunático. A sua herdade é hoje constituída por duas parcelas que totalizam 230 hectares, dos quais devem este ano sair cinco mil toneladas de uva de mesa, 15 por cento dos quais para exportação.

Desses 230 hectares cerca de 100 são já dedicados ao cultivo de espécies de uva sem grainha (25 por cento para exportação), sector que está a crescer de tal modo que o produtor começar a hesitar no momento de decidir que novas vinhas plantar.

Uvas sem grainhas é que já não dirão muitos consumidores portugueses, que nunca ouviram e nem querem ouvir falar dessas modernices. Mas, se calhar, não é modernice nenhuma.


Uvas do papai

As uvas são uma história de família para António Silvestre. Já o avô as produzia na região de Torres Vedras. Depois, em 1965, o pai começou a plantar vinha na Herdade do Pinheiro, em Ferreira do Alentejo, até chegar a uns impressionantes 420 hectares. Pelo meio, em 1972, passou a exportar uva de mesa para Inglaterra, mas entretanto deu-se o 25 de Abril e as histórias do costume. 

Em 1978, António Silvestre viu-se na contingência de emigrar para o Brasil, vindo a leccionar zootecnia na Universidade Estadual de Maringá, estado de Paraná. O pai morreu em 2000 e foi aí que ele regressou a Portugal para herdar uma das três parcelas da herança: cerca de cem hectares de vinha de mesa, a que deu o nome de Vale da Rosa, tal como a horta que já existia na Herdade do Vale da Rosa O pai já tinha resolvido substituir o tradicional sistema de condução de vinha emespaldeira por vinhas em pérgula, um sistema que hoje se encontra generalizado no Vale da Rosa.

Entretanto, o filho emigrado ensaiou outras novidades do outro lado do Atlântico, onde plantou uvas sem grainhas. Teve o benefício instantâneo de lhe fazer crescer a cotação na sua própria casa, recorda António Silvestre: "Os meus filhos eram ainda muito pequenos quando fui buscar uvas sem grainhas à Universidade de Davis, na Califórnia. No dia em que levei o primeiro cacho de uvas sem grainhas para o almoço, as uvas mudaram de nome lá em casa. Os miúdos, que costumavam perguntar-me à chegada 'Papai trouxe uva?', passaram a perguntar: 'Papai trouxe uva semcaroço?'" De volta a Portugal em 2000, António Silvestre revolveu fazer um telefonema à organização inglesa que costumava comprar uva de mesa ao seu pai e foi informado que agora já só compravam uva sem grainhas.

Desde aí que o destino do Vale da Rosa mudou: se as tradicionais uvas com grainha continuam a ser produzidas para o mercado português, uma parcela crescente da plantação de novas vinhas passou a ser ocupada por uvas sem grainhas, mais a pensar na exportação. "Tenho muita dificuldade no mercado nacional, porque as pessoas ficam desconfiadas em relação ao que não é natural. Mas encontrei uma maneira simples de explicar o que produzo é dizer às pessoas que sempre comeram uva sem grainhas, nomeadamente nas passas dos bolos.

Na verdade, a uva sem grainha sempre existiu paralelamente à uva com grainha, mas as bagas eram pequenas e os cachos pouco bonitos. De há alguns anos a esta parte passou a haver maior interesse pela uva sem grainha e por isso a sua produção foi apurada. Agora o Norte da Europa já só importa uva sem grainha e dizer isto também lhe dá alguma credibilidade no mercado interno".


Mercedes da fruta

Com ou sem grainha, o propósito do Vale de Rosa é produzir uva de mesa de primeira qualidade. Outra história de António Silvestre: "Uma vez encontrei uma senhora num supermercado que achou que as nossas uvas eram caras. Ela até comentou: 'Uva é uva, não será que é toda igual?' Eu respondilhe: "Aí é que a senhora se engana. Uma coisa é um Fiat e outra é um Mercedes. Não quer dizer que o Fiat não seja bom, mas o Mercedes é melhor. Eu fiz uma fábrica para construir Mercedes". Dito assim, soa algo pretensioso, mas a partir do momento em que se fala em deitar toneladas de uva para o lixo a conversa da qualidade passa a fazer outro sentido.

Toda a uva produzida no Vale da Rosa passa por três etapas de selecção: uma antes da floração, outra no engrossamento (pósfloração) e uma terceira na chamada fase do pintor, quando a uva começa a ganhar a sua cor definitiva. A selecção é considerada sinónimo de qualidade, num espírito que não anda muito longe do darwinismo: "Só pode ficar no pé aquele cacho que nós acreditamos que vai ter excelente sabor. Já aqueles que achamos que não se vão dar tão bem são retirados e assim os cachos vizinhos ficam mais bem nutridos. Claro que se vou contar isto as pessoas não acreditam. A diferença entre fazer uvas e fazer uvas de grande qualidade é que nós jogamos para o chão isso tudo que seria vendido. Qualidade significa centenas de pessoas a fazer croché com as tesouras, para que os bagos exaltem o seu potencial".

O processo é ainda mais exclusivo no caso das uvas sem grainhas, uma vez que, depois da selecção por cachos, há uma fase de selecção por bagos (um trabalho que implica saírem cerca de 30 por cento mais caras que as uvas com grainha). Passamos a um exemplo prático. Suponhamos que cada lançamento numa determinada área de plantação tem três cachos.

Então deita-se o pior dos três para o chão, logo na pré-floração. Depois, no engrossamento, os maiores lançamentos ficam com dois cachos e os mais pequenos só com um. Finalmente, na época do pintor, só se conservam os melhores cachos na planta. Se a variedade for sem grainha e, suponhamos, um cacho conseguir produzir 280 bagos, estes são cortados até (por exemplo) se chegar aos 120, para estes ficarem mais grossos e com melhor sabor.

Usar as tesouras é a técnica fundamental, mas há outras operações que convergem para o mesmo efeito, incluindo amputar o córtex da planta. Este expediente não inibe a subida da seiva bruta, mas cria obstáculos à descida da seiva elaborada, que até encontrar um circuito alternativo se demorará mais a alimentar o cacho e a engordar os bagos.


Choque do frio

Se optimizar a qualidade da produção da uva de mesa é um das grandes apostas do Vale da Rosa, outra é estender ao máximo o período da colheita que por estas bandas se alonga até meio ano, enquanto noutros lados não vai além dos dois meses. Aumentar o calendário de produção implica, contudo, trabalhar variedades que produzem precocemente, caso da uva com grainha Cardinal, que se começa a colher logo em Junho, bem como de variedades que amadurecem mais tarde, por exemplo a Black Pearl, outra variedade com grainha que se consegue colher quase até finais de Novembro.

Produzir variedades precoces implica usar o sistema de pérgula com estufas para a sua área de plantação ficar toda fechada, incluindo as laterais, que passam a ser enroladas quando as noites já não são tão frias. As espécies mais tardias, por outro lado, dispensam a protecção do frio, empregando apenas cobertas para evitar o apodrecimento e atrasar ao máximo a data de colheita.

Quilómetros e quilómetros de terras ondulantes, tapadas com plásticos, como uma espécie de Almeria em pequena escala, não fazemcertamente do Vale da Rosa um dos recantos mais atraentes do Baixo Alentejo. Deve, porém, reconhecer-se que o plástico resulta e que a eficácia é mesmo tudo o que conta nesta herdade, onde o ciclo produtivo nem sequer encerra com as vindimas. Seguese o "choque do frio", operação democraticamente aplicada a todas as variedades, que se destina a enrijecer e aumentar a durabilidade da fruta. Esta deve chegar a cerca de três graus às prateleiras dos supermercados em Inglaterra e a coisa de sete graus às grandes superfícies do mercado interno.

Se em relação às uvas com grainhas não parece haver grande coisa para aprender, em contrapartida a fase de pioneirismo no que toca à implantação das uvas sem grainhas no Alentejo está ainda longe da conclusão. Daí a presença de técnicos chilenos e argentinos no Vale da Rosa e a experimentação constante de novas variedades. Daí também a parceria estabelecida pela herdade alentejana com a empresa californiana Sun World, num regime semelhante ao franchising. Explica António Silvestre: "Nós fazemos os testes desta ou daquela variedade de que a Sun World é detentora e depois passamos à plantação em larga escala das que se dão melhor.

Ficamos ligados a eles, temos de lhes pagar royalties". Sai mais caro, mas também oferece outras garantias, incluindo a salvaguarda contra os vícios do mercado: "De repente há uma variedade que fica na moda e todos os proprietários começam a plantá-la. Resultado: três ou quatro anos depois, passa a valer pouco porque todos a têm. Já as variedades originárias dessa organização são protegidas, porque eles definem as quantidades que devem ser plantadas em cada região do mundo para não comprometer os preços".

A grande ambição da marca Vale da Rosa é crescer na exportação e por isso integrou a comitiva de agricultores portugueses que emFevereiro passado expôs na feira de fruta de Berlim, a maior do mundo na especialidade. Para além de Inglaterra, o cliente mais antigo, a herdade começou a exportar para Angola e para o Brasil. E talvez em breve, quem sabe, haja outros países em que as suas caixas de estampado estilizado venham a decorar mais estabelecimentos comerciais.

Herdade Vale da Rosa
Apartado 111 7900-909
Ferreira do Alentejo
Tel.: 284 739 9333
www.valedarosa.com

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