Fugas - Vinhos

Paulo Ricca

Enologia não interventiva?

Por Rui Falcão

São cada vez mais os enólogos e produtores a descreverem-se a si próprios como não intervencionistas, confiando que o vinho se produz a si próprio. De onde surgiu este conceito tão irreal?

As modas e tendências, poderosas como são, influenciam o mundo do vinho de forma especialmente virulenta, sujeitando os seus intervenientes a utilizar lugares comuns de absorção simples, frases feitas repetidas até à exaustão. Uma das mais recentes, e que consagra um dos chavões mais apreciados pelos espíritos condicionados pelo pensamento politicamente correcto, assegura com convicção que os melhores vinhos só poderão ser fruto de uma aproximação enológica não interventiva, onde o enólogo se deverá confinar ao papel de mero espectador do trabalho de Deus e da natureza. Segundo esta visão, mais ou menos idílica, o vinho seria consagrado como um produto espontâneo e quase sagrado, resultado directo da bondade da natureza.

Presentemente, são poucos os enólogos e produtores que não alinham, pelo menos publicamente, por este diapasão, proclamando as virtudes da enologia minimalista, atestando a quase ausência de intervenção, prescrevendo uma aproximação leve e sem ingerências no destino superiormente traçado pela natureza. Ou seja, são raros os enólogos que hoje não anunciam o seu vinho como o resultado de um processo natural e espontâneo da videira, em lugar de uma obra propositada e criativa do homem.

Um paradoxo absoluto! Porque, a ser séria tal premissa, isso implicaria que os melhores vinhos teriam de ser o resultado directo da graça de Deus, restando ao homem o papel de simples espectador dos caprichos da natureza, de mero tutor do fruto da videira. Como narrativa romântica e como sound byte empolgante a imagem é encantadora, mas, infelizmente, o conceito tem pouco a ver com a realidade. Porque, deixando de lado os maneirismos do marketing e a ditadura do pensamento politicamente correcto, a ideia romântica da enologiade intervenção minimalista pouco ou nada significa! A afirmação poderá até parecer chocante, mas o vinho é tudo menos um efeito directo da natureza.

Pelo contrário, o vinho é uma criação intelectual do homem, porventura uma das suas criações mais completas e sublimes, dependente de dezenas de pequenas e grandes decisões, de escolhas, de intervenções mais ou menos incisivas. O vinho é uma criação artificial, criado e acarinhado pelo homem, com a cumplicidade da natureza. Porque, convém não o esquecer, sem o acompanhamento do homem o resultado natural e instintivo do esmagamento e posterior fermentação das uvas não seria o vinho... mas sim o vinagre! Sem a intervenção directa do homem, sem o seu amparo e protecção, o vinho não existiria.

Tal como não existiriam as videiras, pelo menos da forma como as entendemos hoje. Videiras que são uma planta trepadeira domesticada pelo homem, disseminada pelos cinco continentes, condicionada pelo homem. Quem se entretém a discutir sobre uma aproximação minimalista ao vinho tende a esquecer-se da intervenção contínua que praticamos na vinha, abstraindo-se de comentar processos como a condução da vinha, podas, desfolhas, mondas em verde, irrigação, compassos e distâncias entre linhas e tantas outras condicionantes artificiais a uma planta bravia que o homem domesticou e conduz a seu belo prazer, intervindo directamente na sua lavra.

O culto da não intervenção e da enologia minimalista é uma falácia que assume muitos dos erros de princípio evidenciados no manifesto político adoptado pelo documentário Mondovino, visível nas distinções facilitistas e primitivas entre bons e maus, entre pobres e ricos, entre produtores puros e artesanais versus os produtores industriais e as grandes multinacionais do vinho. Não é difícil perceber de que lado da barricada de comunicação a maioria dos produtores quer estar.

Fazer um vinho é intervir sobre a natureza. Da mesma forma que um escritor traça uma narrativa graças à escolha das palavras, um enólogo constrói os seus vinhos graças à escolha das muitas decisões que teve de tomar ao longo do processo.

Não foi certamente por acaso que os franceses escolheram as palavras elevage e affinage para definir de forma explícita as principais funções de enologia, aproveitando dois conceitos que explicam de forma eloquente as tarefas de produtores, enólogos e adegueiros.

Educar e apurar os vinhos são tarefas que a natureza, por mais benévola que seja, não consegue providenciar. Ao longo da feitura de um vinho há infinitas decisões a tomar, mesmo numa enologia assumida como minimalista, a começar pela marcação da data de vindima, a primeira e mais decisiva das intervenções impostas pelo enólogo. Depois seguem-se um rol de decisões e intervenções imprescindíveis para o desempenho do vinho. É que nem mesmo os apologistas do não intervencionismo desejarão deixar de fermentar a temperaturas controladas, de maneira a conseguir governar de forma mais apurada a extracção de cor e taninos nos vinhos tintos, ou a expressão da fruta ou de outros predicados nos vinhos brancos.

São apenas duas das muitas intervenções necessárias nas adegas. Um enólogo é um decisor, não um espectador do processo. Intervenções como permitir ou suprimir macerações com as peles das uvas, desengaçar ou manter o engaço da uva, autorizar ou impedir a fermentação maloláctica, determinar o tempo de estágio, são algumas das muitas deliberações que um enólogo tem de efectuar ao longo da vida de um vinho.

E o que dizer quando os não intervencionistas envelhecem o vinho em madeira, velha ou nova, francesa ou americana... mas sempre exógena ao vinho? Deverá o vinho transformar-se então numa manipulação artificial e industrial da uva? Claro que não, e quanto menor for a manipulação necessária da fruta, melhor. Mas tal como poucos acreditarão no conceito de não intervenção na educação de um filho, deixando-o à solta e entregue a si próprio, sem regras nem valores, por mais liberal ou rigorosa que a educação pretenda ser, poucos acreditarão que o vinho se fará sozinho, sem o condicionamento do homem. O vinho é um processo de criação intrinsecamente interventivo.

A aproximação enológica não interventiva não passará, no seu melhor, de uma aspiração legítima e poética... e, no seu pior, de uma convincente e eficaz ferramenta de comunicação.

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