Fugas - Vinhos

Histórias e trocadilhos

Por Rui Falcão

O que terá em comum um produtor sul-africano de vinho e queijo com os afamados vinhos franceses da região de Côtes du Rhône?

Férias, tempo de relaxamento e de paz, de merecido descanso depois de um ano inteiro de trabalho e stress, tempo de repouso físico e mental. Tempo certamente para assuntos mais ligeiros, para temas que não impliquem reflexões profundas, para crónicas mais soltas que apontem para os factos curiosos do vinho. Sobretudo quando o vinho é terreno tão fértil para as histórias absurdas ou gloriosas, para os grandes e pequenos momentos da vida.

O que não falta no universo do vinho são as personagens excêntricas que emprestam um colorido especial ao mundo que gira em seu torno. Veja-se, por exemplo, aquela que é considerada como a mancha de vinha mais pequena do mundo, a Africus Rex, sita num pequeno pátio de uma casa canadiana, numa localidade próxima de Toronto. Mais do que pequena, a vinha é liliputiana, resumindo-se a escassos dois metros por três, numa vinha estreme plantada unicamente com a casta Cabernet Franc. Para ajudar à festa, a vinha conta ainda com uma adega igualmente mínima, disposta num quarto, mas capaz de engarrafar a produção integral da casa, precisamente sob o nome Africus Rex.

Qual é o truque que permite dispor videiras num simples pátio urbano, num espaço ínfimo e sem terra, numa área de dimensões tão reduzidas que mal comportaria um simples pé de Cabernet Franc? Simples, basta utilizar a imaginação e plantar videiras bonsai!

Videiras bonsai plantadas numa área urbana, e por isso sem terra ou solo disponíveis, condições que forçaram o jovem viticultor a ter de aplicar os princípios da hidroponia, plantando as videiras directamente em água, com as raízes embebidas numa solução nutritiva equilibrada que, para além de água, contém todos os nutrientes essenciais ao desenvolvimento da videira. A prova primorosa de que o único limite para a paixão é a imaginação, ou de como as condicionantes de viver num clima áspero e num ambiente urbano não são impeditivos para a realização de um sonho.

Igualmente exóticos, para não dizer excêntricos, são os vinhos Hatten, o único produtor de vinhos na paradisíaca ilha indonésia de Bali. Um produtor tão excêntrico... que os episódios insólitos fazem parte integral do seu dia-a-dia. Para começar, talvez valha a pena adiantar que durante os primeiros sete anos de existência a adega fez qualquer coisa como uma centena de vindimas! Não, claro que não foram cem vindimas por videira. Mas por estarem num clima de vegetação tropical, com calor ininterrupto ao longo do ano, sem estações frias que permitam a latência da planta, a produção é constante, seduzindo as videiras a produzir novas colheitas logo após a vindima.

Como o clima é estável ao longo de todo o ano, sempre quente e húmido, é possível condicionar cada parcela de vinha a permanecer em estágios diferentes, permitindo vindimar durante quase todas as semanas do ano, num processo contínuo de corte, prensagens e fermentações. O único senão de fazer crescer uma vinha em Bali é que, com um clima tão agressivo, nenhuma das variedades tradicionais consegue subsistir durante muito tempo, pelo que, após muitos ensaios infrutíferos, acabaram por optar por uma uva de mesa, a Alphonse-Lavallée, uma uva sem grainhas, única variedade capaz de suportar condições tão limite para a vinha. As videiras são conduzidas num misto de pérgola e enforcado, tal qual os sistemas tradicionais da região Minho.

Como remate final para a lista de raridades sobre o produtor Hatten, falta só referir que as videiras das variedades Cabernet Sauvignon e Chardonnay morreram não só devido aos efeitos do clima... mas também pelos ataques de térmitas, aparentemente entusiasmadas por estas duas castas.

E se pensava que os únicos vinhos elaborados num estabelecimento prisional, feitos pelos reclusos que trabalham a vinha, realizam a vindima e conduzem o trabalho na adega, pertenciam a Pinheiro da Cruz, desengane-se. Não só porque existe outro estabelecimento prisional português a assumir o mesmo papel, a prisão de Alcoentre, como ainda existem casos afins noutros países europeus. O mais humorístico, pelos títulos escolhidos para os rótulos, é o do estabelecimento prisional de Velletri, a sul de Roma. Os reclusos produzem cerca de 45.000 garrafas/ano, com rótulos que divagam entre o Fugitivo (Fuggiasco) e o Fechado a Sete Chaves (Sette Mandate).

Falta de humor e imaginação demencial são também o que não falta ao produtor sul-africano Fairview Estate, uma das adegas mais conhecidas da África do Sul... embora a dose e o tipo de humor sejam muito menos apreciados em França do que em qualquer outra parte do mundo. Tudo porque Charles Black, o proprietário, para além de vinho produz ainda queijo, alimentado pelo enorme rebanho de cabras que passeiam pela quinta, na região de Paarl.

No centro da quinta ergue-se o verdadeiro ícone de Fairview Estate, uma torre de pedra onde as cabras podem deambular à vontade. Inspirado nas cabras, mas sobretudo nas afamadas regiões francesas de Côtes du Rhône, Charles Black introduziu uma série de rótulos ajustados a trocadilhos fonéticos com alguns dos nomes mais respeitados de muitas das sub-regiões de Côtes du Rhône. A nova marca passou a chamar-se Goats Do Roam (cabras que vagueiam), um nome cujo som resulta absolutamente idêntico ao som de Côtes du Rhône. Pouco depois lançou rótulos com nomes tão sugestivos como Goat Roti (cabra assada), facilmente confundível com Côte Rotie, uma das denominações de origem mais reverenciadas do norte das Côtes de Rhône.

Entre os vinhos mais recentes contam-se o Goat Door Chardonnay (porta das cabras), foneticamente idêntico com Côte d'Or, talvez a denominação mais venerada de vinhos brancos na Borgonha, e o misterioso rótulo Bored Doe (corça enfadada), que em inglês soa exactamente como Bordeaux, um vinho de Bordéus. A acrescentar ao lote sobra o Goats in Villages (cabras nas aldeias), em referência axiomática à denominação Côtes du Rhône Villages. Não espanta que as autoridades e produtores franceses não achem uma graça especial aos trocadilhos...

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