Fugas - Vinhos

Fernando Veludo

Nikolaihof e biodinâmica

Por Rui Falcão

Não é fácil caracterizar a agricultura biodinâmica de uma forma directa e simples. Não é fácil conciliar uma mentalidade científica racional com um mundo que por vezes se aproxima do esotérico e do misticismo.

Confesso sem hesitação, tenho uma relação algo dúbia com as prédicas e os postulados da biodinâmica, com os preceitos e as práticas, com a filosofia que lhe é subjacente. Se por um lado a minha formação académica científica e racional me distancia dos conceitos fundamentais da biodinâmica, a prática, essa, apesar da inexistência de explicações razoáveis, tem demonstrado que a prática biodinâmica pode proporcionar resultados notáveis.

Se a lógica e o raciocínio cartesiano me distanciam por inteiro do conceito, a perspectiva de uma agricultura mais saudável, respeitadora do ambiente e do homem, são juízos que me seduzem abertamente. Se a tendência para o evangelismo e o proselitismo dos fundamentalistas da biodinâmica me incomodam, os resultados práticos, esses, costumam ser excitantes.

Claro que é fácil perder o contexto e desvalorizar os fundamentos, saboreando os ângulos mais caricatos da biodinâmica. Claro que é fácil desprezar o essencial, deixando que seja o burlesco a reinar. Sim, é fácil escamotear a verdade, esquecer os princípios, esquecer o respeito para com a terra e os elementos, esquecer os resultados, centrando a atenção na ideia do oculto, na chacota, na negação categórica do que não se compreende.

Apesar de ninguém adivinhar os porquês, apesar da total ausência de respostas por parte da ciência racional, a prática evidencia que a agricultura biodinâmica consegue produzir resultados inexplicáveis, oferecendo uma vitalidade e qualidade ímpar na vinha. Efeitos confirmáveis, mesmo que meramente empiricamente, por todos aqueles que já visitaram vinhas doutrinadas na prática biodinâmica, visíveis na qualidade da fruta, na ausência de doenças... e na abundância de vida pela vinha.

Tal como na agricultura orgânica, a utilização de fertilizantes sintéticos, fungicidas, herbicidas ou pesticidas é considerado um anátema nas práticas biodinâmicas. Adubar significa fecundar ou vivificar o solo e não simplesmente emprestar nutrientes às plantas. Em alternativa aos fertilizantes e sistémicos de síntese habituais, a agricultura biodinâmica utiliza diversos preparados que, aplicados segundo o calendário da natureza, incentivam o regresso da vida no solo.

Ora é precisamente nos preparados, no exotismo de alguns dos compostos e elaborações, que a atenção mediática se agarra. Nada mais invulgar, e aparentemente caricato, que imaginar um corno de vaca recheado de excrementos do animal a ser enterrado no solo, numa data concreta, para ser posteriormente desenterrado numa outra data concreta segundo o compasso dos ciclos lunares. É o preparado 500, um dos muitos preparados e tisanas indispensáveis à prática da agricultura biodinâmica.

Serve o intróito para discorrer sobre os magníficos vinhos do produtor austríaco Nikolaihof, plantado na região de Wachau. Durante anos, mantive uma opinião ambígua sobre o produtor, apreciando os seus vinhos mas sem verdadeiramente perceber a filosofia, a coerência e a lógica da criação. Hoje, apresento-me como um dos muitos convertidos, como um dos devotos da causa, como um dos apreciadores atentos dos poucos vinhos que o produtor Nikolaihof vai lançando regularmente no mercado.

A racionalidade tradicional da viticultura e enologia é aqui substituída por um discurso muito próprio assente numa ligação profunda com a terra, assente em práticas aparentemente suicidas, adubadas por uma saudável dose de loucura, misticismo... e romantismo. A adega do produtor, estimada como uma das mais antigas da Áustria, assente sobre fundações romanas, foi construída há mais de mil anos, no muito distante ano de 985, algo de que poucos produtores no mundo se poderão orgulhar. Curiosamente, Nikolaihof foi o primeiro produtor de vinhos a converter-se à causa e a implementar as práticas e os princípios da biodinâmica, ainda em 1971, numa época onde, aos olhos dos seus vizinhos boquiabertos, as práticas utilizadas não andariam muito longe da ideia de loucura... ou feitiçaria!

Na vinha, de resto tal como na adega, Nikolaihof confia nas virtudes de uma intervenção minimalista, ou, sempre que pode, da não intervenção quase absoluta. Os vários vinhos da casa, sempre brancos, anunciam-se puros e cristalinos, incrivelmente minerais, muito ligeiramente oxidativos, numa lógica que é em tudo... ilógica! Segundo as práticas correntes da ciência nada nesta adega deveria funcionar e a tragédia deveria andar par a par com cada operação, numa calamidade anunciada. O resultado, porém, é o oposto do vaticínio e simplesmente espantoso. Ao contrário do que a razão faria supor, os vinhos envelhecem incrivelmente bem!

Ainda me recordo quando um dia, numa feira em Viena, Christine Saahs, a guardiã da casa, me convidou a provar uma garrafa do seu Riesling... de rótulo tapado. Encontrei um vinho maravilhoso, repleto de carácter, intenso mas educado, mineral até à exaustão, frutado, floral, repleto de cera, limão, alperce e acácia, límpido e eléctrico, tenso e fresquíssimo como poucos conseguem ser. Quando Christine Saahs me interrogou sobre a data de colheita fiquei sem saber o que dizer. Todos os indícios apontavam para um vinho ainda rapazote, embora as entrelinhas insinuassem uma idade já mais adolescente. Arrisquei indicar uma data perto do início do milénio, assumindo já algum excesso de zelo, refugiando-me numa margem de erro que considerei confortável. Fiquei atónito quando Christine Saahs me mostrou o rótulo e descobri gravado no papel o ano 1990!

Sim, tinha acabado de errar a data de nascimento do vinho por uma década inteira, e o Riesling límpido, transparente e severo que estava no copo... tinha vinte anos de idade. Cruel e entusiasmante, sobretudo quando me inteirei que este Nikolaihof Riesling Vinothek 1990 envelheceu durante 166 meses em madeira, catorze anos em cascos antigos de madeira avinhada, tonéis com quase duzentos anos de vida! Candidamente, Christine Saahs acrescentou que não tinham adicionado qualquer sulfuroso, qualquer conservante, por mais natural que fosse... e que a única terapia durante estes catorze anos de vida em casco, antes do engarrafamento, consistiram numa limpeza trimestral dos cascos, uma simples limpeza externa polindo os cascos com um pano seco. Tudo isto numa adega que se situa a poucos metros do leito do rio Danúbio, enterrada quase quatro metros abaixo da linha de água do rio, num local húmido e tendencialmente bafio!

Que distância para os princípios da enologia moderna!

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