Fugas - Vinhos

Em busca das leveduras indígenas para criar vinhos diferentes

Por Pedro Garcias

Na última vindima, a Sogrape fez quatro vinhos diferentes na Bairrada a partir do mesmo mosto. Conseguiu-o usando quatro leveduras indígenas que validou a partir de uma selecção prévia de 34 estirpes. Com esta investigação, é um novo mundo que se abre. A Fugas entrevistou António Graça, responsável pela área de inovação da empresa

Microrganismos vivos, as leveduras não se vêem a olho nu, mas andam pela vinha e pela adega, e sem elas não tínhamos vinho. Além de transformarem os açúcares das uvas em álcool e dióxido de carbono, interagem com inúmeros compostos, influenciando o aroma e o sabor do vinho. São tão importantes que a indústria tem vindo a criar estirpes tipo mísseis teleguiados, para produzir vinhos com um determinado perfil aromático.

A boa notícia é que há empresas a investigar cada vez mais e a seleccionar leveduras indígenas que permitam fazer melhor vinho e também vinhos diferentes, sem desvirtuarem o carácter do terroir. É o caso da Sogrape que, depois de, há cerca de duas décadas, ter contribuído para a selecção da levedura QA23, indígena do Minho e hoje uma das estirpes mais usadas no fabrico de vinhos brancos em todo o mundo, iniciou um novo processo de selecção de leveduras autóctones em várias regiões do país. E as primeiras experiências foram surpreendentes, como revela nesta entrevista António Graça, responsável pela área de inovação da empresa.

Depois da aposta nas castas autóctones, começa a prestar-se agora uma maior atenção às leveduras indígenas. A que se deve este fenómeno?

As leveduras são algo que está ainda por desenvolver. De uma forma genérica, temos tido a nível mundial uma utilização maciça das leveduras ditas comerciais, quando há em cada região um potencial enorme em leveduras nativas, que podem fazer vinhos diferentes. Isso ficou patente há cerca de duas décadas, quando a Sogrape colaborou com a Comissão de Vitivinicultura dos Vinhos Verdes, a Universidade de Trás-os-Montes e uma empresa de Biotecnologia, a Proenol, num trabalho de identificação das leveduras da região dos Vinhos Verdes, do qual saiu uma levedura, a QA23, que é a mais importante a nível mundial para os vinhos brancos. Foi isolada na Quinta de Azevedo, da Sogrape. O curioso nesta levedura é que ela não impõe um carácter sensorial. Aumenta e potencia o carácter primário das castas.

As leveduras são assim tão relevantes na produção de um vinho?

São. O que faz revelar o potencial de uma vinha é a levedura, que, pegando nos compostos que existem na uva, os vai transformar e aumentar a potência aromática do mosto. O mecanismo principal das leveduras é transformar o açúcar em álcool. Mas, ao mesmo tempo, há uma série de mecanismos secundários em que a levedura pega em determinados compostos que a uva tem, que não são aromáticos, e os transforma em compostos aromáticos. É isso que dá o carácter ao vinho.

Durante muito tempo ninguém usava leveduras ditas comerciais. Sabia-se que as leveduras andavam na vinha e na adega e o vinho fermentava. O que mudou?

O vinho não é uma coisa natural. O vinho é um estado intermédio da passagem do mosto a vinagre. O que nós temos que fazer é mantê-lo o mais próximo possível da estabilidade e da qualidade. A utilização de leveduras comerciais visa precisamente isso. As populações autóctones de leveduras nem sempre são as mais adequadas, seja para exprimir aromaticamente a qualidade da uva, seja para garantir uma fermentação contínua, correcta e rápida. Antigamente, as fermentações eram espontâneas, mas também é verdade que se estragava muito vinho.

Em contrapartida, os vinhos de hoje, sobretudo os brancos, estão a ficar cada vez mais parecidos, com aromas de perfil tropical...

Isso tem a ver com a tecnologia que se usa e não necessariamente com a levedura. Embora haja leveduras que potenciam esse carácter tropical, é sobretudo a tecnologia que condiciona isso. Houve exageros, porque se começou a descobrir que havia leveduras que impactavam um determinado carácter ao vinho e esse carácter era procurado no mercado, havia uma moda. Uma grande quantidade de produtores foi na esteira desse sucesso e começaram, de facto, a aparecer muitos vinhos iguais. Nem aconteceu tanto agora com os vinhos ditos tropicais, aconteceu mais há 20 anos, com os chamados vinhos tecnológicos. As leveduras que se usavam escondiam, aliás, muito o carácter das castas. Daí o sucesso da QA23 nos vinhos brancos.

O que levou a Sogrape a voltar a olhar para as leveduras passado este tempo?

O que fizemos agora foi repetir um pouco o exercício de há 20 anos, com o objectivo de encontrar leveduras adaptadas a outras regiões que permitissem produzir vinhos com caracteres novos, com novos perfis sensoriais; mas, por outro lado, também quisemos sair um pouco daquilo que tem sido a tendência de limitar todo o trabalho de identificação de leveduras a uma espécie, que é a Saccharomyces cerevisiae. Não usámos esse critério. Analisámos quase 800 estirpes de leveduras e, dessas, mais de metade não era Saccharomyces cerevisiae. Depois fomos seleccionando com base em vários critérios e chegámos a 34 estirpes, em que tínhamos quatro que não eram Saccharomyces cerevisiae, e todas elas produziam vinhos com bastante interesse.

Já estão em condições de as usar?

Neste momento, as quatro estirpes que validámos funcionam em escala normal de vinificação. Nesta vindima vamos experimentá-las em várias castas, de vários locais, e procurar encontrar a melhor adaptação entre a estirpe de levedura e a casta e o tipo de mosto da região onde é produzido. Estamos na fase de desenvolvimento.

Vão aplicá-las a todos os vinhos?

Vamos experimentá-las.

Vão experimentar com o Barca Velha?

Vamos experimentar com mostos da Quinta da Leda [onde é feito o Barca Velha] e vamos ver como funciona. Se ela se der bem com o Barca Velha, porque não?

Se a QA23 permite potenciar a tipicidade das castas, com estas pretendem o quê?

Potenciar caracteres diferentes das castas. É criar variedade. Aumentar a diversidade. O mercado valoriza os vinhos diferentes e é esse o grande potencial dos vinhos portugueses.

As experiências que fizeram são animadoras?

Muito animadoras. Nós pegámos em 200 mil litros de mosto da Bairrada e dividimo-lo por quatro cubas de 50 mil litros e em cada cuba pusemos cada uma das quatro estirpes. E fizemos quatro vinhos completamente diferentes. Com boa qualidade, mas com aromas diferentes. Uns mais para o lado dos ananases e dos toques florais, outros mais minerais, outros mais resinosos. Você pega naquilo e diz: "Isto são quatro vinhos completamente diferentes." No entanto, o mosto de partida era o mesmo.

Quantos anos demorou este trabalho?

Começámos há três. Fizemos rastreio nos Verdes, Douro, Bairrada, Dão e Alentejo.

Há diferenças?

Enormes. Há uma boa repartição das leveduras seleccionadas pelas várias regiões. O nosso maior espanto foi ver leveduras que não são Saccharomyces cerevisiae a ter o mesmo comportamento, quando toda a literatura, de uma forma geral, diz que apenas a Saccharomyces cerevisiae tem condições para fermentar bem mostos para vinho. E nós conseguimos encontrar algumas não Saccharomyces cerevisiae que também o fazem. Uma das quatro estirpes que validámos não é Saccharomyces cerevisiae. É uma novidade.

Não há um risco de pegarmos num mesmo mosto e fazermos quatro marcas diferentes?

Se quisermos, podemos ir por aí. Mas a ideia é criar perfis aromáticos diferentes. O nosso objectivo é muito mais conseguir uma boa ligação entre uma boa levedura e um bom potencial de terroir. É conseguir leveduras que exprimam ao máximo o carácter do Dão, do Douro, da Bairrada, do Alentejo... O maior perigo é você plantar uma vinha. Fica agarrado a ela durante pelos menos 30 anos.

--%>